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Tem algo errado no conceito de Bolsonaro sobre "combate à corrupção"

Escolha do presidente para o comando do MPF enfraque e compromete a independência de órgão vital para o sucesso de operações como a Lava Jato

Publicado em 06/09/2019 às 04h46
Atualizado em 06/09/2019 às 09h47
Presidente Jair Bolsonaro (PSL). Crédito:  Isac Nóbrega/PR
Presidente Jair Bolsonaro (PSL). Crédito: Isac Nóbrega/PR

Tem algo errado, muito errado, no conceito de Bolsonaro sobre "combate à corrupção" e na sua compreensão sobre a importância da separação entre os Poderes da República. A sua escolha para o cargo de procurador-geral da República (PGR) e, mais importante ainda, os critérios que presidiram sua escolha, apontam, mais uma vez, um descompasso abissal entre discurso de campanha e prática de governo.

Bolsonaro já nem faz questão alguma de disfarçar a sua falta de compromisso verdadeiro com o combate à corrupção, doa a quem doer. A indicação do procurador Augusto Aras para substituir Raquel Dodge é mais um gesto nesse sentido. No caso específico, o presidente não fez questão alguma de esconder seu objetivo de controlar o Ministério Público Federal (MPF), por meio do chefe da instituição, subordinando-o diretamente ao presidente da República, ou seja, a ele próprio.

Bolsonaro disse que o próximo PGR teria que ser alguém alinhado com o seu governo. Ora, o chefe do MPF não tem que ser alinhado a governo e a governante algum. Não deve ser alinhado. Não pode ser alinhado. Esse "alinhamento" desabrido e declarado arruína, na partida, a independência e a autonomia funcional do chefe do MPF. E independência e autonomia funcional são tudo o que o MPF precisa ter para cumprir a contento o seu dever funcional, institucional e constitucional: defender o interesse público.

Defender o interesse público significa defender, por exemplo, o uso correto dos recursos públicos justamente por aqueles que nos governam. Significa, portanto, ter liberdade para investigar, se necessário, o próprio presidente da República, seus parentes, seus ministros e aliados. Rodrigo Janot, por exemplo, investigou e denunciou Temer por corrupção enquanto o emedebista ocupava a Presidência da República (Janot foi o mais votado na lista tríplice elaborada pelos pares em 2013).

Que independência terá o PGR escolhido por Bolsonaro se, declaradamente, o critério decisivo em sua escolha foi seu "alinhamento" ao governo de Bolsonaro?!? Piora a situação o fato de que o ungido pelo presidente é contestado pelos próprios membros do MPF, entre os quais ele não tem a menor liderança nem o menor reconhecimento interno para representar a categoria.

A indicação de Bolsonaro gerou revolta da Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR), que, em vez de se sentir representada, sente-se desrespeitada e ultrajada por Bolsonaro. Os próprios colegas de Aras não reconhecem a sua autoridade para comandar, nos próximos dois anos, o MPF.

Enfim, o absurdo maior da situação é o fato de Bolsonaro ter escolhido alguém que lhe agrada pessoalmente, mas que não agrada ao próprio MPF. Sim, o mesmo MPF tão essencial nos últimos cinco anos para o sucesso de operações como a Lava Jato.

A escolha do presidente põe em xeque até o futuro da operação - até porque esse é só um dos inúmeros sinais, muitos deles vindos do próprio Palácio do Planalto, de que o esforço geral no momento, em todos os vértices da Praça dos Três Poderes, é para abafar a Lava Jato.

Agusto Aras foi indicado para a PGR. Crédito: Roberto Jayme/Ascom/TSE
Agusto Aras foi indicado para a PGR. Crédito: Roberto Jayme/Ascom/TSE

O CHEFE DO PGR NÃO DEVE PROTEGER "O REI"

Falando em "pôr em xeque", a "figura de linguagem" usada por Bolsonaro, em conversa com jornalista da Folha na última terça-feira, não dá margem a nenhuma dúvida quanto ao propósito explícito do presidente de cooptar o MPF, como se esse fosse não um órgão independente de investigação e persecução penal, e sim mais um ministério do seu governo.

Propondo uma analogia com um jogo de xadrez, Bolsonaro se comparou ao rei e, como parte do mesmo raciocínio, citou o PGR como "a dama" (ou rainha): a peça mais poderosa de um exército no tabuleiro, usada, além da função de ataque, para proteger o próprio rei. Tudo errado. Tudo errado...

Presidente da República e chefe do MPF não podem nem devem jogar na mesma equipe nem "fazer parte do mesmo exército", pelas razões já expostas. São chefes de instituições diferentes e independentes. Segundo e mais importante: o PGR não deve estar a serviço do "rei"; não pode nem deve "protegê-lo". É chefe de um órgão de Estado. Não serve a um presidente nem a um governo, mas ao povo, ao interesse público.

Como já mencionado, proteger o interesse público, em princípio, pode significar inclusive contrariar o rei, se necessário.

Ainda assim, Bolsonaro afirmou, com a máxima naturalidade - dir-se-ia, com candura de Poliana -, como se as coisas fossem assim mesmo e não houvesse o que se discutir: o PGR é a rainha, o rei sou eu.

Como os seus oito primeiros meses de governo trataram de demonstrar, Bolsonaro não entende muitas coisas em nosso ordenamento jurídico e no funcionamento de nossa República - a começar pelo próprio papel do presidente (o seu) na República que ele agora representa. Parece também não compreender o papel do PGR.

Ou não compreende mesmo a importância da independência do MPF - o que é inadmissível desconhecimento - ou finge não compreender mas na verdade simplesmente não dá a mínima - o que é cinismo ainda menos aceitável.

Raquel Dodge será substituída na chefia do Ministério Público Federal (MPF). Crédito: Cesar Itiberê/PR
Raquel Dodge será substituída na chefia do Ministério Público Federal (MPF). Crédito: Cesar Itiberê/PR

LISTA TRÍPLICE NA LATRINA

Desde o início do processo de escolha do sucessor de Raquel Dodge, Bolsonaro ignorou a lista tríplice de candidatos ao cargo, formulada, como manda a tradição, pelos próprios integrantes do MPF (procuradores da República). Nunca fez o menor caso dela. Simplesmente engavetou-a.

Desde Lula em 2003, justamente para valorizar essa independência e prestigiar a escolha dos próprios procuradores, o presidente da República escolhia o mais votado da lista tríplice. A instituição se fortaleceu com isso.

Foi essa autonomia o que permitiu, por exemplo, a consolidação e o êxito de uma operação anticorrupção como a Lava Jato, que combateu malfeitos praticados inclusive por integrantes do partido então no governo (PT) e de seus aliados (MDB, PP etc.), isso para não falar em membros do alto escalão dos próprios governos Lula, Dilma e depois Temer.

Rompendo com essa tradição, Temer preferiu Raquel Dodge, a segunda da lista tríplice. Mas ela pelo menos estava na lista tríplice! Submeteu-se ao escrutínio dos pares.

Agora, quem é Augusto Aras? Ou melhor, quem é Aras para estar ali? É o que grande parte dos procuradores, perplexos, perguntam-se neste momento. Sem disputar lugar na lista tríplice, ele nem sequer participou de debates públicos para expor as suas ideias (familiar a Bolsonaro?).

No lugar dos debates e do escrutínio público, Aras e Bolsonaro preferiram reuniões fechadas, fora da agenda oficial…

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