Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

"Uma Garota de Muita Sorte", da Netflix, desperdiça boas ideias

"Uma Garota de Muita Sorte" adapta livro de Jessica Knoll com Mila Kunis vivendo uma mulher invejada por todos, mas que lida com fortes traumas do passado

Vitória
Publicado em 08/10/2022 às 18h25
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Filme "Uma Garota da Muita Sorte", da Netflix. Crédito: Sabrina Lantos/Netflix

“Uma Garota de Muita Sorte” se esforça demais desde o início. Em menos de 20 minutos do filme dirigido por Mike Barker a partir do romance de Jessica Knoll (que também assina o roteiro) já conhecemos Ani (Mila Kunis), uma jornalista em plena ascensão e com uma vida invejável. Ani se esforçou para conseguir bolsa e estudar nas melhores escolas, se encaixa no padrão invejável de beleza, tem uma boa carreira e está prestes a se casar com Luke Harrison (Finn Wittrock), o noivo dos sonhos de qualquer mulher - pouco importa que ela tenha distúrbios alimentares e sonhe em esfaquear o noivo, o que vale são as aparências.

Em flashbacks vamos conhecendo melhor a protagonista (interpretada por Chiara Aurelia na adolescência) e logo descobrimos que ela é uma sobrevivente de um dos mais letais ataques a escolas nos EUA. Enquanto um ex-colega carrega marcas do ataque e se tornou político, ela prefere não falar sobre e é considerada por alguns até suspeita de ser cúmplice do atirador. O filme é muito didático ao mostrar isso, com direito até a Ani fazendo uma pesquisa na internet para se informar do básico de um assunto que ela domina.

Aos poucos, os flashbacks se tornam mais importantes para a narrativa do que o arco situado em 2015. Não foi o ataque que traumatizou Ani, mas a violência sofrida por ela dias antes, quando foi vítima de um estupro coletivo em uma festa. “Uma Garota de Muita Sorte” é duro ao mostrar as cenas, mas Aurelia é ótima, transmitindo ao espectador a dor e a agonia daquele momento em que é tratada como um pedaço de carne mesmo que peça para seus abusadores pararem.

A questão do trauma, foco do filme, é bem apresentada, mas muito mal aproveitada. Falta sutileza à adaptação do livro de Knoll para criar um filme com mais camadas, com mais subjetividade. A voz interna da Ani adulta faz bons comentários irônicos em alguns momentos, mas o exagero confere à obra uma exposição desnecessária e até irritante - várias cenas seriam mais bem construídas a partir das reações da protagonista, mas o texto opta pelo didatismo.

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Filme "Uma Garota da Muita Sorte", da Netflix. Crédito: Sabrina Lantos/Netflix

“Uma Garota de Muita Sorte” tenta abraçar vários arcos e várias mensagens, mas nem sempre se sai bem. É irônico que Jessica Knoll adapte seu livro para uma versão piorada nas telas, pois o filme funcionaria se fosse mais enxuto. Mila Kunis se sai bem como uma mulher que vive de aparências em busca de algo que supostamente a faça deixar os traumas para trás - ao se casar, ela deixará de ser uma filha da classe média, mudará de nome e não mais será “a sobrevivente do massacre”, ao subir na carreira, será respeitada pelo status que carregará. Sem se resolver internamente, Ani busca a transformação perante os olhos da sociedade.

O texto ainda aborda a misoginia e os privilégios de diferentes formas, do abuso sofrido por Ani na adolescência a comentários feitos por seu noivo “dos sonhos”, passando pela noção de que homens héteros ricos e brancos podem fazer o que bem entenderem. O filme, porém, é superficial, nunca explorando os possíveis conflitos com profundidade.

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Filme "Uma Garota da Muita Sorte", da Netflix. Crédito: Sabrina Lantos/Netflix

O filme deixa claro, desde o início, que Ani é uma narradora questionável - em uma cena na escola, o professor (Scoot McNairy, escondido pelo texto) elogia a análise da jovem de que Holden Caulfied, personagem de “O Apanhador no Campo de Centeio”, é um narrador em quem não se pode confiar. É justo, assim, acreditar que o público tenha acesso não à verdade dos acontecimentos, mas à visão de Ani sobre eles, o que justificaria algumas escolhas mais controversas.

Ao fim, “Uma Garota de Muita Sorte” tem boas ideias na maneira como lida com o trauma e boas mensagens que se relacionam com a vida da autora, mas uma execução incapaz de sustentar tudo o que o filme pretende. Mike Barker busca um tom estilo “Uma Garota Exemplar”, o que nem sempre funciona pela total ausência de suspense. Sem sutileza e boas viradas, o filme da Netflix desperdiça uma boa atuação e uma oportunidade de trabalhar uma história de construção de imagem social às sombras de um grande trauma.

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