Crítico de cinema e colunista de cultura de A Gazeta

"Judas e o Messias Negro" é um poderoso drama histórico

Em cartaz nos cinemas e cotado para o Oscar 2021, "Judas e o Messias Negro" reconta o sujo jogo do FBI contra os Panteras Negras nos anos 1960

Vitória
Publicado em 09/03/2021 às 00h28
Filme
Filme "Judas e o Messias Negro". Crédito: Warner/Divulgação

No final dos anos 1960, os EUA tinham uma ameaça que assustava ainda mais do que a União Soviética. Fundado em 1966, o Partido dos Panteras Negras representava um conflito interno que, além de levantar as bandeiras do socialismo soviético, também colocava em pauta a discussão antirracista e agiam em comunidades às quais o governo não oferecia condições. Não foi à toa que o então diretor do FBI, J. Edgar Hoover, os nomeou como “a maior ameaça à segurança do país” e deu início a um programa de vigilância e controle com táticas nem sempre muito limpas para prender ou matar seus líderes minando, assim, a credibilidade do partido perante a população.

Um pouco das práticas do governo americano já foi visto em “Os 7 de Chicago”, de Aaron Sorkin. No filme lançado pela Netflix, Bobby Seale (Yahya Abdul-Mateen II), um dos fundadores dos Panteras Negras, é levado injustamente a julgamento, amarrado e amordaçado durante dias pelo juiz Hoffman. Mesmo depois de inocentado de todas as acusações ainda durante o julgamento, Seale acabou condenado por desacato. No filme, Fred Hampton, líder dos Panteras Negras de Chicago, está presente no julgamento para apoiar seu companheiro.

Em “Judas e o Messias Negro”, em cartaz nos cinemas, Bobby Seale e o julgamento dos sete de Chicago são citados, mas servem como pano de fundo para a história de Fred Hampton (Daniel Kaluuya) e Bill O’Neal (LaKeith Stanfield). O filme dirigido por Shaka King tem início já com Hampton estabelecido como um líder político em Chicago. À época, os Panteras Negras se aliavam a outros movimentos de oposição ao governo para aumentar sua força política e sua atuação social.

Quando conhecemos Bill, ele é um ladrão de baixo escalão, que dá golpes em quem aparecer pela frente. Pego pela polícia, é recrutado pelo agente Roy Mitchell (Jesse Plemons), do FBI, para se infiltrar no grupo próximo de Hampton e trabalhar como informante dos federais. Pelo olhar do personagem de LaKeith Stanfield vamos conhecendo os Panteras Negras, suas áreas de atuação e, principalmente, Fred Hampton.

A atuação de Daniel Kaluuya (premiado com o Globo de Ouro) é brilhante. O ator constrói um Fred Hampton forte, decidido e carismático. Assim, não parece improvável que aquelas pessoas o sigam e que ele consiga levar para seu lado grupos de lutas diferente das dos Panteras Negras. Kaluuya consegue se sair bem tanto nos discursos de Hampton, com fala rápida atropelando palavras, quanto na linguagem corporal, se impondo nos ambientes e atraindo os olhares.

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Filme "Judas e o Messias Negro". Crédito: Warner/Divulgação

LaKeith não apenas acompanha o colega, ele representa o espectador em cena numa atuação impecável. Apesar de o roteiro não se aprofundar tanto nos dilemas vividos por Bill, é com ele que sentimos os conflitos do filme. O informante passa, aos poucos, a acreditar e a querer cada vez mais fazer parte no movimento no qual está infiltrado. Não é à toa que a história de Bill O’Neal após os acontecimentos do filme seja tão sofrida.

“Judas e o Messias Negro” é um filme de atuações e contrastes. Em uma falsa simetria, o FBI tenta convencer a população de que os Panteras Negras são um grupo terrorista, o extremo oposto à Ku Klux Klan. Shaka King desconstrói essa simetria mostrando a atuação do movimento de Fred Hampton em diversas áreas da sociedade, de forma legítima, atuando em lugares em que o estado não chegava.

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Filme "Judas e o Messias Negro". Crédito: Warner/Divulgação

O diretor toma liberdades criativas em relação aos fatos, como criar um movimento negro, os Crowns, uma organização fictícia para representar diversos outros movimentos da época. O antagonismo inicial entre os movimentos funciona para dar tensão e ritmo ao filme, principalmente durante uma cena em que Hampton, Bill e vários outros Panteras Negras participam de uma reunião com Crowns fortemente armados. Além disso, Hampton e O’Neal tinham, respectivamente, 21 e 17 anos na época em que o filme se passa; mesmo não citando a idade de nenhum deles no texto, o filme obviamente os retrata como mais velhos em função da idade dos atores, cerca de 10 anos mais velhos que os personagens.

King também alivia um pouco o caráter socialista marxista do discurso de Hampton - embora seja tachado como uma ameaça comunista e tenha falas claramente anti-capitalistas, o ativista ganha contornos mais suaves e é humanizado pelo roteiro, que também mostra sua vida afetiva e investe um pouco em sua relação com Deborah Johnson (Dominique Fishback) e em sua amizade real com outros membros do grupo.

“Judas e o Messias Negro” foge da tentação de fazer uma biografia de aspecto semi-documental. O diretor de fotografia Sean Bobbitt ("12 Anos de Escravidão") fez extenso trabalho de pesquisa sobre os Panteras Negras e faz uma opção por quadros de forte contraste. As cenas do grupo liderado por Fred Hampton são tecnicamente diferentes das do FBI, com cores mais frias, enquanto os agentes federais ganham tons mais amarronzados e fortes. Bobbitt escolhe seguir os Panteras Negras com takes longos e câmera na mão, registrando, assim, a constante movimentação do grupo. Intencional ou não, a maneira domo Bobbit e King filmam LaKeith à noite, desaparecendo nos pensamentos de Bill O'Neal, também dão um tom de mistério ao filme.

O filme de Shaka King funciona bem como biografia, mesmo com as liberdades tomadas, mas também tem bons momentos de thriller policial com o jogo duplo de O’Neal e os bastidores do FBI. É um drama poderoso e cruel, mas com boas doses de entretenimento. Praticamente ignorado pelo Globo de Ouro (a HFPA não tem um membro negro entre seus 87 votantes e nunca se preocupou com isso), o filme pode ter chance de mais indicações no Oscar, que pelo menos tem prezado pela diversidade entre seus votantes.

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