É artista e escritora, e como observadora do cotidiano, usa toda sua essência criativa na busca de entender a si mesma e o outro. É usuária das medicinas da palavra, da música, das cores e da dança

Crônica: Peixe-novo

Oferecer confiança pode ser fundamental para receber a segurança almejada. Repare, aquele que foi até o mar conquistar o pescado, só entregou o melhor deles, em troca do melhor pedido...

Publicado em 16/01/2022 às 02h00
peixe
Como de costume, não tinha pretensão sobre o tipo de peixe, bastava que fosse fresco. Crédito: Freepik

Porque era domingo, dia clássico de moqueca, o homem foi à peixaria. Como de costume, não tinha pretensão sobre o tipo de peixe, bastava que fosse fresco. Faixa preta que é no engenho do cozido capixaba, costuma chegar cedo pra pescar nos balcões da Praia do Suá.

Nesse dia, passava das nove da manhã quando ele chegou e os peixes já não estavam bonitos, ou não pareciam frescos como ele faz questão que estejam. De modo que depois de ouvir com paciência o discurso do vendedor, ele entoou um "vamos lá... Dá pra melhorar!" – o tom pareceu cativar o homem de avental branco, que sem dizer uma palavra, sorriu de leve, depois marchou até a parte de trás da peixaria e voltou carregando pelo rabo um Cação quase vivo de tão fresco e tão brilhante.

"Esse sim".

A cena me fez pensar que para receber, é preciso saber ofertar...

Segundo o rabino Nilton Bonder, há uma lenda antiga que compara dois mares: o mar da Galileia, farto de peixes e vida marinha; e o mar Morto, um caldo sem vida. Ambos banham o mesmo território, mas o mar da Galileia recebe através dos rios que o encontram, as águas do descongelamento das neves de Golan, e também deixa fluir de si as águas do rio Jordão, que terminam no mar Morto. Já este, por sua vez, não as deixam seguir. Segura e pronto. Morto, não sabe fluir. Ou seja, não aprendeu a receber.

Sem estabelecer uma relação com o outro, com a natureza, com o universo, o que seja, não há fluxo, e sem fluxo não há vida. Saber receber é saber deixar ir – eis a grande dinâmica proposta aqui na Terra! Porque sem se incluir, sem circular, sem fluir, a natureza apodrece e o propósito se encerra.

O que significa que tudo, cada singular elemento, como aquele Cação na peixaria, é parte inseparável do todo. Todo este que flui por vias: num cenário sadio, o pescador que sabe receber, tira do mar a justa medida do que é capaz de vender, ou consumir, porque entende que o que abunda estraga. E o cozinheiro, que sabe oferecer, acredita na capacidade de "melhorar" que o pescador pode ter. São dois vetores afins: ofertar e receber – e ambos envolvem um saber.

Oferecer confiança pode ser fundamental para receber a segurança almejada. Repare, aquele que foi até o mar conquistar o pescado, só entregou o melhor deles, em troca do melhor pedido... Note, dinheiro na mão não bastava pelo melhor peixe... Mas um ajuste fiel: eu sei e você sabe, "somos iguais" – isso sim.

Não sei você, mas acho isso profundamente poético no nosso ecossistema natural e social. Tão bom quando acontece...

Mas, nem sempre as condições estão presentes.

Ora, da mesma forma que o fenômeno da luz elétrica só se dá na presença da combinação corrente + resistência; a energia que nos transforma (saúde, amor, paz, bem-estar) também precisa de fluxo (disposição, vontade fluir, de trocar) e capacidade (estrutura, bom senso, habilidade para sustentar). Movimento e equilíbrio, ação e estrutura, o peixe e a isca, a água que corre e o chão do mar... Potente e sutil ao mesmo tempo.

Finalmente, entre os peixes na banca há sempre aqueles de olhos turvos e guelras desbotadas. Da mesma maneira, sempre haverá um ou outro vendedor ganancioso e bom de lábia, pronto pra vender o que haja. Mas, tudo bem, porque no fim das contas, somos nós os responsáveis pelo nosso próprio sistema de trocas... Pense nisso.

Ah, e pense também que não precisamos aceitar qualquer coisa. Ao contrário, se valorizar é oferecer confiança.

É um pedido em troca.

Enfim, "vamos ver se melhora".

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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