Publicado em 27 de junho de 2022 às 19:24
O secretário de atenção primária do Ministério da Saúde, Raphael Câmara, defendeu o guia do Governo Federal que afirma que todo aborto é crime e que, portanto, não há interrupção de gravidez legal no Brasil, mas abortos "previstos em lei".>
Está marcada para esta terça-feira (28) uma audiência pública na sede da pasta para debater o documento lançado no início deste mês. A discussão acontecerá em meio à repercussão do caso da menina de 11 anos de Santa Catarina, vítima de estupro.>
Defensorias públicas, entidades que lidam com o tema, grupos de estudos e clínicas jurídicas de universidades brasileiras enviaram manifestações ao Ministério da Saúde nos últimos dias para contestar o guia e pedir a respectiva revogação.>
Querem também o adiamento da audiência pública, convocada com apenas uma semana de antecedência. O aviso da reunião foi publicado no Diário Oficial da União na última terça (21), sem divulgação por parte da pasta até a sexta-feira (24).>
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À reportagem, na sexta, Câmara afirmou que a agenda está mantida.>
Obstetra e crítico do "ativismo pró-aborto", como já escreveu em artigo no jornal Folha de S.Paulo, o secretário repetiu os termos da cartilha para dizer que, na visão dele, "todo aborto é crime" e o que ocorre é que não há punição penal quando o procedimento acontece dentro das hipóteses previstas em lei.>
O aborto legal no Brasil está inscrito no Código Penal, que ampara a interrupção da gravidez em caso de estupro, risco de morte para a gestante e anencefalia do feto.>
Câmara fez uma analogia com o crime de homicídio, mesmo argumento usado na cartilha.>
"Se você mata alguém e, após investigação policial, fica provado que você matou em legítima defesa, você cometeu um crime, mas não será punido por causa do excludente de ilicitude", disse.>
O excludente de ilicitude está previsto no Artigo 23 do Código Penal e diz textualmente, diferentemente do que prega o secretário e a cartilha, que "não há crime" quando preenchidos os requisitos, entre os quais a legítima defesa.>
"Nunca vi a mídia chamar de 'homicídio legal' nesses casos. O que há é um homicídio com excludente de ilicitude. É a mesma coisa do aborto", afirmou.>
Além de a comparação usada pelo governo estabelecer textualmente na lei não haver crime, o excludente de ilicitude se aplica ao fato já consumado. Já as regras do aborto legal são autorizativas do ato, que deve ser realizado por profissionais da medicina.>
As novas diretrizes foram publicadas pela Secretaria de Atenção Primária do ministério em 7 de junho.>
Para os defensores públicos, a informação do secretário tem imenso potencial de causar desinformação. O grupo afirma que "há indiscutível consenso sobre o fato do aborto não ser crime" em três situações: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto. "Pode-se dizer que, nestas hipóteses, o aborto é legal.">
"A gente enxerga que a (audiência) é simplesmente para dar um verniz democrático à versão preliminar do guia", afirma a defensora pública do Estado de São Paulo Nálida Coelho Monte, que é coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres.>
Câmara, por sua vez, afirmou que não vai adiar a audiência pública porque uma semana "é tempo mais que suficiente" para as pessoas se organizarem.>
"Se você me chamasse para discutir aborto de um dia para o outro, eu pararia a minha vida toda e iria para a audiência. Se isso realmente for prioridade, pague sua passagenzinha, venha para Brasília, e fale. Uma semana é tempo mais que suficiente", disse.>
O ministério informou que a lista de participantes ainda não está fechada. Câmara adiantou que convidou a Defensoria Pública da União, o Conselho Nacional do Ministério Público e pessoas e entidades que, assim como ele, rechaçam o termo "aborto legal".>
A avaliação dos defensores públicos é de que, mesmo sem valor jurídico, o guia pode impedir ou dificultar o direito ao aborto legal, como ocorreu com a menina de 11 anos vítima de estupro. O Hospital Universitário de Florianópolis condicionou o procedimento a uma decisão judicial.>
"Na prática, esse guia, devido às várias informações imprecisas e destituídas de caráter científico, dá uma falsa percepção de insegurança jurídica e deixa os profissionais de saúde coagidos ante à necessidade de aplicação do procedimento médico", avalia a defensora pública Nálida Coelho Monte.>
A advogada e pesquisadora do Instituto de Bioética Anis, ONG a favor da descriminalização do aborto, Gabriela Rondon explica que a avaliação de que o aborto deve ser realizado até a 22ª semana de gestação ou enquanto o feto pesar menos de 500 gramas já foi superada. A informação também aparece em uma norma técnica de 2012 do Ministério da Saúde.>
"O objetivo (do documento de 2012) era criar certos padrões para a prestação do serviço. A questão é que essa norma técnica está defasada. Ela já tem 10 anos e está em desconformidade com os guias internacionais mais recentes", afirma.>
"A normativa que fala especificamente do caso de anencefalia, inclusive, dá orientações sobre como realizar o aborto na 27ª semana (de gestação). O que mostra que claramente não é uma questão clínica. É possível realizar o aborto acima dessas semanas (20ª ou 22ª).">
A Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou novas diretrizes sobre o aborto em março deste ano e sugere que os países eliminem normas que criam obstáculos a ele. Segundo Rondon, o documento também não estabelece limites gestacionais para a realização.>
"Não é a OMS que trata de obstetrícia, vamos deixar isso claro. Quem trata de definição médica são as sociedades médicas. Essa é a própria definição da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia)", disse o secretário.>
Nota da Febrasgo de 22 de junho o contraria. "O conceito de aborto induzido é a 'perda intencional da gravidez intrauterina por meios medicamentosos ou cirúrgicos', e não tem relação com viabilidade fetal, ou seja, não está atrelado à idade gestacional ou peso fetal", afirma a entidade.>
Rondon afirma ainda que as normas técnicas do ministério são instrumentos infralegais, que não estão acima da lei. "O mais correto é interpretar que o aborto legal no Brasil, nas hipóteses previstas no Código Penal, não está submetido a nenhum tipo de limite de idade gestacional", disse.>
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