Publicado em 29 de dezembro de 2019 às 09:05
Folhapress - Logo em seu primeiro artigo, a nova lei de abuso de autoridade, que entra em vigor em 3 de janeiro, impõe uma condição para a punição de agentes públicos que está sendo encarada por especialistas em direito penal como um obstáculo para que a medida seja, de fato, aplicada.>
A nova lei atinge integrantes das polícias, do Ministério Público e do Judiciário e especifica condutas que devem ser consideradas abuso de autoridade, além de prever punições. Boa parte das ações já era proibida, mas de maneira genérica -a previsão agora é de até quatro anos de detenção.>
Pelo texto do artigo 1º, porém, só haverá punição caso fique comprovado que os agentes públicos atuaram com intenção de prejudicar alguém ou se beneficiar.>
"Certamente este artigo primeiro diminui bastante a força da legislação, porque os crimes todos previstos na lei de abuso de autoridade vão depender desta finalidade específica de prejudicar alguém ou de beneficiar a si mesmo ou a terceiro", diz David Teixeira de Azevedo, professor de direito penal da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo).>
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"A autoridade denunciada sempre dirá que não teve objetivo nenhum, nenhuma finalidade de prejudicar o direito de ninguém ou se beneficiar. Dirá que não agiu por mero capricho ou satisfação pessoal", afirma Azevedo.>
Helena Lobo da Costa, também professora de direito penal da USP, diz que é muito difícil produzir provas sobre a intenção dos agentes públicos que cometem abuso de autoridade.>
"É uma questão com a qual o direito penal lida há muito tempo e a gente nunca consegue entrar na cabeça da pessoa para saber exatamente o que ela queria. Então é visto a partir de questões externas. Exemplo. O juiz comentou com alguém que aquele réu precisava tomar uma lição? É difícil imaginar esse tipo de situação, mas a gente está pensando numa situação de abuso de autoridade", diz Costa.>
"A lei não foi pensada para pegar aquela autoridade que de repente foi mais rigorosa. Ela é feita pela autoridade que abusa. Então no caso de abuso nem sempre a gente consegue fazer a prova do dolo.">
Aprovada pelo Congresso em setembro, a lei tramitou com rapidez após a divulgação pelo site The Intercept Brasil de conversas por mensagem entre integrantes da Lava Jato.>
A troca de mensagens indicava, entre outras coisas, que o então juiz do caso, Sergio Moro, orientou a Procuradoria a juntar documentos e indicou provas contra réus, além de determinar a ordem das fases da investigação.>
Houve forte reação contra a lei por parte de associação de magistrados, membros do Ministério Público e policiais. O próprio ministro da Justiça, Sergio Moro, foi contrário à nova legislação, encarando como um ataque ao combate à corrupção. O presidente Jair Bolsonaro vetou pontos da lei, mas parte dos vetos foi derrubada pelo Congresso.>
A inclusão do artigo primeiro, na análise de Azevedo, foi uma concessão dos parlamentares contra as pressões dos agentes públicos que se sentiram atingidos pela lei.>
"Tratou-se de uma cláusula acrescida à lei para tornar politicamente possível a sua aprovação. Devemos lembrar a grande mobilização das autoridades públicas de magistratura e Ministério Público contra a aprovação da lei e que falavam sempre da incriminação do erro de interpretação", diz.>
A possibilidade de que os alvos das denúncias, quando não comprovada a intenção, façam uma representação contra os denunciantes por denunciação caluniosa, cuja pena pode chegar a oito anos de prisão, também pode inibir esse tipo de ação.>
"A nova lei de abuso de autoridade exige o dolo específico para que o crime seja caracterizado. Se as representações que forem feitas com base na lei não apontarem no que consistiu esse dolo, em tese daria ensejo que o representado impute ao representante a denunciação caluniosa", afirma Fernando Mendes, presidente da Associação de Juízes Federais.>
O professor da USP diz, porém, que isso não quer dizer que nunca haverá punição. "Hoje é muito fácil qualquer um fazer prova com gravação do ato. Então você grava o ato da autoridade o encontro com o delegado e às vezes nem precisa gravar porque outros estão gravando, hoje as audiências estão sendo feitas de maneira audiovisual", diz Azevedo.>
O volume de denúncias contra um agente também pode favorecer a punição. "Os abusos serão punidos quando filtro colher autoridade. O juiz correto, bom, que nunca teve muito problema na corregedoria é alvo de uma denúncia de abuso de autoridade, esse negócio [denúncia] não vai colar. Mas se é figurinha carimbada e já é conhecido, já tem várias reclamações, várias representações, acho que estes acabarão por ser alcançados", afirma Azevedo.>
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