Publicado em 14 de fevereiro de 2024 às 10:12
Uma das definições do dicionário para o termo “arrebatamento” é “estado de profundo êxtase e enlevo espiritual”. Para religiosos, sobretudo os evangélicos pentecostais, a palavra está muito atrelada à ideia de fim dos tempos e da volta triunfal de Jesus. >
No último domingo (11/2), no Carnaval baiano, a cantora Baby do Brasil — que também é pastora evangélica e já se autoproclamou “popstora” — declarou que todos precisam estar atentos “porque nós entramos em Apocalipse”. >
“O arrebatamento tem tudo para acontecer entre cinco e dez anos”, disse ela durante apresentação da cantora Ivete Sangalo em um bloco em Salvador.>
Passagens da Bíblia, mais especificamente a primeira das cartas escritas pelo apóstolo Paulo de Tarso (5-67 d.C.) aos cristãos de Tessalônica, hoje parte da Grécia, sugerem esse cenário.>
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“Porque o Senhor em pessoa, ao sinal dado, à voz do arcanjo e ao toque da trombeta de Deus, descerá do céu; então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; em seguida nós, os vivos que tivermos ficado, seremos arrebatados com eles sobre as nuvens, ao encontro do Senhor, nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor”, diz o trecho.>
Em outras palavras, o texto bíblico descreve o que acontecerá quando ocorrer a aguardada volta de Jesus pelos cristãos, com a ressurreição dos mortos e o arrebatamento, aos céus, dos vivos. >
“Essa passagem [da carta de Paulo] é alvo de muitas interpretações”, pontua à BBC News Brasil o historiador, teólogo e filósofo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. >
Assim como toda leitura bíblica, ele adverte que é preciso observar o contexto histórico do texto.>
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“Paulo estava vivendo um problema específico com essa comunidade de Tessalônica. A comunidade entrou num marasmo de esperar a volta de Cristo, as pessoas estavam simplesmente abandonando suas atividades, seus afazeres… O apóstolo tentou de alguma maneira dizer: continuem vivendo, porque ninguém sabe quando isso vai acontecer. Aí ele escreve essa passagem falando desse suposto encontro entre os que estiverem vivos e Jesus”, contextualiza Moraes.>
Algumas informações sobre o que se dizia na época são necessárias para que a leitura não seja feita com anacronismos. >
“A primeira coisa a ser pontuada é que Paulo esperava de maneira confiante e com uma certeza inabalável que Cristo voltaria enquanto ele ainda estivesse vivo”, lembra o teólogo. “E isso não aconteceu. Quase 2.000 anos depois, gerações sucessivas, e Cristo não voltou.”>
O segundo ponto foi o papel de liderança do apóstolo. >
“Paulo estava, de alguma maneira, tentando tratar de um problema: uma comunidade que resolveu simplesmente aguardar a volta, como uma seita. E Paulo diz que não é bem assim. E afirma que quando acontecer, o que nós veremos é que será ouvida a voz do arcanjo, ressoada a trombeta, e descerá dos céus o Senhor, os mortos ressuscitarão e depois os vivos se encontrarão com Jesus: este é o suposto arrebatamento”, explica.>
Líder do Grupo de Estudos do Protestantismo e Pentecostalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde também é professor, o sociólogo Edin Sued Abumanssur afirma que, na carta, Paulo “tentava explicar aos cristãos de Tessalônica o que iria acontecer no final dos tempos”. >
“A igreja dessa cidade estava muito preocupada com o que viria depois. E Paulo tentou esclarecer. Interessante é que outras cidades da época onde havia igrejas cristãs, onde o cristianismo estava começando, não tinham o mesmo problema, as mesmas preocupações”, atenta Abumanssur. >
Ele ressalta que, “na ideia de Paulo, os cristão que permanecerem firmes na fé serão arrebatados e vão se encontrar com Cristo nas nuvens”. >
“A questão do arrebatamento é uma doutrina muito polêmica, muito disputada, absolutamente não consensual: a doutrina da volta de Cristo”, diz o sociólogo.>
Explicada a ideia, é hora de entender como essa passagem bíblica acabou sendo interpretada ao longo dos séculos — e como é entendida por grupos contemporâneos, que tendem a expressar frases como a proferida pela cantora Baby do Brasil. >
“Fica a pergunta: o que significa esse encontro com Jesus nos ares? Porque supostamente você flutuar e se encontrar com ele, quando mortos estão ressuscitando, isso me parece uma coisa até trivial tendo em vista o que está acontecendo. O fenômeno é que, de repente, uma divindade vem ao encontro de seu povo, mortos estão ressuscitando e ganhando novamente seus corpos e os vivos estão sendo elevados”, comenta Moraes.>
O teólogo acrescenta que toda essa narrativa é “miraculosa”. Ele diz que a determinados setores do neopentecostalismo é cara a "ideia de flutuar, de encontrar nos ares. Por isso se fala tanto desse ideal de arrebatamento”.>
Mas é preciso mergulhar um pouco mais nas escrituras para vislumbrar o entendimento do tempo do fim do mundo, conforme cada interpretação.>
Pois se Baby do Brasil diz que esse arrebatamento está prestes a acontecer, isso configura seu pensamento dentro de uma das linhas interpretativas de outro livro bíblico, o último do cânone, o livro do Apocalipse. >
Ela se situa naquilo que se entende como pensamento pré-milenismo. Ou seja: entende, como é comum dentre a maioria dos cristãos pentecostais e neopentecostais, que um tempo de tragédias indica a volta de Jesus que, então, chegará para estabelecer seu reino de paz e justiça na Terra. >
Aquecimento global, pandemia de covid-19, guerras na Ucrânia e em Israel, enchentes, terremotos: tudo isso seriam indicativos dessa ideia para alguns religiosos. >
A narrativa está no capítulo 20 do Apocalipse. Descreve um anjo que desce do céu e aprisiona um dragão “que é o Diabo e Satanás”, “para que não seduzisse mais as nações até que se completassem os mil anos”. >
Depois de tal período, o demônio novamente seria solto para a batalha final. >
“Essa passagem é uma espécie de complemento teológico da visão do arrebatamento”, comenta Moraes. >
O teólogo lembra, contudo, que há, na história do cristianismo, três interpretações para essa alegoria bíblica: os pré-milenistas, os pós-milenistas e o amilenistas.>
“A maioria dos chamados pentecostais, sejam os clássicos ou os neopentecostais, acabam adotando o princípio [do pré-milenismo]”, explica Moraes.>
Nesse sentido, eles entendem que haverá a volta de Jesus, com o arrebatamento, e isto estaria atrelado ao estabelecimento de um reino de justiça na Terra, por mil anos. >
“Guerras, terremotos ou epidemias são encarados como prenúncio da volta de Cristo, como sinais de que este tempo está chegando e seremos arrebatados, que Cristo vai governar a Terra durante mil anos”, observa o teólogo Moraes. >
“E eles entendem que este governo de Jesus Cristo será em Jerusalém, a Jerusalém que conhecemos hoje. Há a ideia de um reino político de Jesus”, diz o teólogo.>
A outra visão, a dos pós-milenistas, entendem que primeiro será estabelecido um tempo de paz e justiça e, só então, Jesus voltará. >
Segundo Abumanssur, esta corrente normalmente é defendida por “correntes teológicas mais envolvidas com transformações sociais”, pois pressupõe uma melhoria da qualidade de vida do mundo antes do retorno de Jesus. “Neste caso, o período de mil anos de paz e justiça precede a volta de Cristo”.>
Por fim, há a leitura dos amilenistas, que rejeitam essa crença em um reinado físico terreno literal de Jesus. >
“O Apocalipse é de um gênero literário surgido em um ambiente de perseguição, o que implicava uma necessidade de literatura cifrada, enigmática, que somente os iniciados entendiam”, explana Moraes. >
“Não é necessariamente a descrição de fim do mundo. É um gênero literário e tem por finalidade trazer consolo aos perseguidos, como se eles dissessem que a situação estava muito ruim mas ‘veja só no que nós acreditamos: no final venceremos’.”>
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