Publicado em 13 de outubro de 2019 às 08:30
(FOLHAPRESS) - À primeira vista, Irmã Dulce era uma figura miúda e frágil conhecida por sua fé em Deus e devoção aos mais pobres de Salvador. Mas quem conviveu com a freira conheceu uma mulher bem-humorada que gostava de futebol, tocava sanfona, dava apelidos e fazia piadas até mesmo com presidentes da República.>
Ela foi canonizada neste domingo (13), em cerimônia chefiada pelo papa Francisco, no Vaticano, após ter dois milagres reconhecidos pela Igreja Católica. Irmã Dulce (1914-1992) é a primeira santa brasileira.>
A Igreja Católica anunciou em 2011 a beatificação da freira, reconhecendo o seu primeiro milagre. O caso aconteceu em 2001, em Sergipe, quando as orações a Irmã Dulce teriam feito cessar uma hemorragia em Claudia Cristina dos Santos, que padeceu durante 18 horas após dar à luz o seu segundo filho.>
Em 2019, foi reconhecido o segundo milagre: depois de 14 anos convivendo com uma cegueira causada por um glaucoma, o maestro Jose Maurício Moreira recuperou a visão em 2014.>
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Com uma grave conjuntivite, ele colocou uma imagem de Irmã Dulce sob os olhos e suplicou que as dores cessassem. No dia seguinte, ao acordar, a nuvem esfumaçada que ele enxergava foi se dissipando e ele voltou a enxergar. Os médicos não encontraram explicação para a cura.>
Filha de uma família de classe média alta, Irmã Dulce foi batizada com o nome Maria Rita. Teve uma infância considerada normal para os padrões da época, mas que foi o oposto do que se esperava de uma menina dentro da conservadora sociedade baiana do início do século 20.>
Gostava de correr descalça nas ruas, fazer guerras de mamonas com os amigos, molhar-se nas fontes das praças, empinar pipa, além de jogar bola no Campo da Pólvora, um dos principais largos da região central de Salvador.>
O futebol foi uma de suas primeiras paixões e serviu como válvula de escape para superar a morte de sua mãe, Dulce Maria, que não sobreviveu a uma hemorragia pós-parto quando Maria Rita tinha sete anos.>
Criada a partir de então pelo pai, o dentista Augusto Lopes Pontes, sua diversão era ir ao estádio nos fins de semana ver os jogos do Ypiranga, na época o time mais popular da Bahia.>
Na beira do gramado do Campo da Graça, berrava e vibrava com os gols de Apolinário Santana, o Popó, um dos primeiros jogadores negros do futebol baiano.>
Na adolescência, deixou de lado o futebol e passou a se dedicar a trabalhos sociais junto com a sua tia Maria Magdalena, que a levou para visitar cortiços no bairro de Brotas.>
Depois de prestar os votos e tornar-se freira, nos anos 1930, descobriu a música como instrumento de evangelização. Irmã Dulce não tinha formação teórica em música, mas tinha bom ouvido. Gostava de Beethoven e logo aprendeu a tocar harmônica e sanfona.>
Na vida missionária, levava a sanfona para tocar modinhas para os presos na penitenciária onde prestava assistência social. Nos anos 1960, após fundar um orfanato na cidade de Simões Filho, animava as crianças tocando e dançando música.>
Em 1947, quando atuava do Círculo Operário da Bahia, fundou o grupo musical Milionárias do Ritmo, formado por operárias e freiras. O conjunto se apresentava antes da exibição de filmes no Cine Roma, cinema fundado para arrecadar fundos para a entidade.>
Para conseguir recursos para suas obras sociais, Irmã Dulce não tinha preconceito e abria espaço até para novidades como um tal rock'n'roll. Foi no Cine Roma que aconteceram as primeiras apresentações de Raul Seixas, que na época liderava o conjunto Raulzito e os Panteras.>
O diretor do Círculo Operário, frei Hildebrando Kruthanp, foi contra os shows de rock no local. Mas Irmã Dulce bancou as matinês e assinou o contrato com o grupo liderado por Raul. Não há registros, contudo, de que a relação entre a futura santa e o autor de "Rock do Diabo" tenha ido além da burocracia.>
Em suas empreitadas para arrecadar recursos para suas obras sociais, costumava fazer troça com os comerciantes. Uma vez, ao ir à loja de ferramentas de Abelardo Barbosa e não encontrá-lo, deixou uma carta: "Senhor Abelardo. Paz e bem! Isto é um assalto! Estou levando uma furadeira".>
Suas piadas não poupavam nem os presidentes da República. Ao presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), que afirmou à jovem freira que ela tinha ganhado um avô, não se fez de rogada: "Meu avô, sua neta está devendo muito". E pediu 6,5 milhões de cruzeiros para finalizar a nova sede do Círculo Operário.>
Ao presidente João Figueiredo (1979-1985) cobrou a liberação de recursos para a ampliação do Hospital Santo Antônio. O presidente retrucou, dizendo que precisaria assaltar um banco para conseguir o dinheiro, ao que ouviu de resposta: "Me avise que eu vou com o senhor".>
Outra face de seu bom humor era a mania de dar apelidos. A funcionária Walkíria Maciel, que se tornou sua confidente e tinha alguns quilos a mais, era chamada pela freira de "Esqueleto". Já a freira Emerência, que já tinha passado dos 90 anos, ganhou a alcunha de "Garotinha".>
Na velhice, quando o organismo começava a fraquejar, resolveu apelidar as partes do próprio corpo: os pulmões eram chamados de "jamelengos", as pernas de "mariquinhas" e o coração de "joãozinho".>
Aos problemas que surgiam no dia a dia buscava encará-los com espírito leve. Quando era informada por um funcionário que faltava pão, por exemplo, mandava-o rezar que o problema se resolveria.>
Situação semelhante aconteceu com Bernardo Gradin, presidente da Granbio e ex-presidente da Braskem que atuou como estagiário nas obras de ampliação do hospital Santo Antônio.>
A reforma foi feita pela construtora Odebrecht, mas custeada com recursos de doações. Um dia, Gradin procurou Irmã Dulce para informá-la que o cimento para a obra havia acabado.>
Ela segurou a sua mão e começou a caminhar pelo hospital. Entrou na ala de pacientes com deficiência mental, onde fez carinho e deu de comer às crianças. Depois, seguiu para a capela, onde ajoelhou e começou a rezar.>
Duas horas depois, olhou para o jovem estagiário e arrematou: "Você viu que Deus me deu muitos problemas para resolver. O cimento você resolve, né"?>
E assim foi feito.>
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