Publicado em 25 de outubro de 2020 às 10:13
Mesmo sem prazo para que uma vacina contra o coronavírus possa ser oferecida, a guerra política já deflagrada em torno do tema traz preocupação entre gestores e especialistas em saúde. Eles temem a existência de planos de vacinação diferentes dentro do país e, o mais grave, uma queda na adesão à imunização.>
Na última semana, as declarações do presidente Jair Bolsonaro contra a "vacina chinesa do João Doria", em referência ao governador paulista e seu adversário político, levaram o Ministério da Saúde a recuar de um anúncio de intenção de compra de 46 milhões de doses da Coronavac.>
O imunizante, que está em desenvolvimento pela empresa chinesa Sinovac e será produzido no Brasil pelo Instituto Butantan, está na terceira e última fase de testes.>
A Folha apurou que, caso a situação não seja revertida, São Paulo já tem o esboço de um plano estadual de vacinação para uso de parte das doses --não há informações sobre a quantidade.>
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Enquanto isso, alguns governadores já cogitam a possibilidade de um consórcio para a compra de vacinas. Outro possível efeito colateral dessa briga seria uma menor oferta de doses que poderiam ser incluídas no PNI (Programa Nacional de Imunizações).>
"O risco é de imunizar menos pessoas do que a gente poderia", afirma Carlos Lula, presidente do Conass, conselho que reúne secretários estaduais de saúde.>
Coordenadora do PNI entre 2011 a 2019, a epidemiologista Carla Domingues tem preocupação semelhante.>
"A questão neste caso não é nem atrasar o cronograma, é diminuir a possível oferta de vacinas. E a tão discutida imunidade de grupo só acontec se a maioria das pessoas é vacinada", afirma.>
Atualmente, o Ministério da Saúde já tem contratos para oferta de ao menos 140 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 quando estas estiverem disponíveis.>
Dessas, 100 milhões viriam por meio de um acordo com a Universidade de Oxford (Reino Unido) e a farmacêutica AstraZeneca para transferência de tecnologia à Fiocruz. Essa vacina também está na última fase de testes.>
Os outros 40 milhões seriam por meio da Covax, iniciativa vinculada a OMS (Organização Mundial de Saúde) e que acompanha estudos de nove potenciais vacinas para oferta entre países.>
Domingues, porém, lembra que tanto a vacina de Oxford quanto a do Butantan devem ser aplicadas em duas doses, o que reduziria a previsão à metade.>
A disputa em torno das vacinas pode acabar também desorganizando a estratégia de vacinação no SUS, centrada em planos nacionais, com iniciativas estaduais restritas a surtos ou ações pontuais.>
Para Carlos Lula, do Conass, o ideal é que haja uma única estratégia nacional. "Por isso tentamos desde o início que todas as vacinas, ainda que haja alguma iniciativa paralela pelos estados, entrem no Programa Nacional de Imunizações. É um equívoco fracionar isso.">
"Podemos ter uma região privilegiada em relação a outra, gente de outro estado viajando para tomar vacina e gente do próprio estado não querendo tomar", diz a epidemiologista Carla Domingues.>
À Folha um representante do ministério disse que ainda não se pode falar em impactos, já que o plano final dependerá do resultado dos testes e da aprovação na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). A pasta tem defendido que a ideia é trabalhar com diferentes vacinas.>
Para Mauro Junqueira, do Conasems, conselho que reúne secretários municipais de saúde, a atual guerra política em torno das vacinas "não tem que ser levada em conta".>
"É uma briga inútil de algo que ainda nem foi aprovado. Quando isso acontecer, sabemos vai ser incorporado.">
Se não há consenso sobre os possíveis impactos nos planos de vacinação, um ponto é comum entre os especialistas ouvidos pela Folha: as declarações de Bolsonaro ameaçam reduzir a confiança nas vacinas e a adesão à imunização.>
Nos últimos dias, o presidente disse que era contra a compra de uma vacina chinesa por não acreditar na sua segurança e que o brasileiro não poderia ser cobaia de vacinas. A fala desconsidera o fato de que a maior parte dos insumos usados em outros imunizantes também vem da China e que qualquer oferta de vacina só ocorrerá após comprovação de segurança e eficácia.>
"Esses discursos contraditórios vão criar uma onda de desconfiança na vacinação, uma situação com vacina, gente treinada pra aplicar, postos de saúde, investimentos milionários e sem gente querendo se vacinar. Corremos esse risco", afirma Renato Kfouri, diretor da Sbim (Sociedade Brasileira de Imunizações).>
Outra discussão recente envolvendo a vacina, sobre a obrigatoriedade ou não da imunização, foi considerada fora de contexto por especialistas.>
"O que elevou a cobertura vacinal nos últimos anos não foi a obrigatoriedade, mas, sim, o conhecimento da população sobre a importância da vacina. Essa questão de obrigatoriedade ficou lá em 1904, na Revolta da Vacina", diz Domingues. (Leia mais abaixo).>
Para ela, as declarações recentes do presidente podem "pôr em risco a credibilidade do processo de vacinação". "Se o presidente diz que vacina quem quer porque não é obrigado e não precisa, ele passa a mensagem de que se vacinar é secundário. É uma mensagem dúbia, confusa e que vai impactar na adesão.">
O Ministério da Saúde afirma que "tem realizado esforços para proteger a população com ações de prevenção e aquisição de vacinas e de transferência tecnológica". Segundo a pasta, além dos acordos com AstraZeneca e Covax, a previsão é que a Fiocruz tenha capacidade de produzir, de forma independente, de 100 a 165 milhões de doses a mais ao longo do segundo semestre de 2021.>
A pasta diz ainda que "segue acompanhando estudos em desenvolvimento no mundo e não descarta novas aquisições, primando sempre pela segurança, eficácia, produção em escala e preço justo".>
Questionada sobre se o protocolo de intenções com o Butantan, para a compra das vacinas da chinesa Sinovac ainda está mantido, a pasta não respondeu. A iniciativa, no entanto, já não era citada na nota enviada à Folha na sexta (23).>
Sobre o risco de queda na adesão, o ministério disse apenas que "após registro junto à Anvisa, as doses chegarão à população por meio do PNI, que há décadas garante o sucesso das campanhas nacionais de vacinação.">
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