Publicado em 21 de maio de 2020 às 16:57
No momento em que o distanciamento social é aplicado para deter o contágio do novo coronavírus e a vida em todos os sentidos -trabalho, educação, diversão e fazer compras- migra para o digital, cerca de 70 milhões de brasileiros têm acesso precário à internet ou não têm nenhum acesso. >
Segundos especialistas da área de tecnologia, a pandemia mostra para o Brasil os riscos de outra faceta da disparidade socioeconômica, a desigualdade digital.>
Mais de 42 milhões de pessoas nunca acessaram a rede. Dos cidadãos das classes D e E já conectados, 85% utilizam a internet só pelo celular e com pacotes limitados. Em situações que exigem trocas mais sofisticadas, como download, streaming e videoaulas, o acesso por franquia de dados a usuários já pobres é considerado de baixa qualidade. Os números absolutos dão uma dimensão mais completa do problema. O mais recente levantamento, em 2018, do Cetic.br -departamento do Comitê Gestor da Internet que monitora a adoção de tecnologias de informação há 15 anos-, mostra que 25 milhões dos mais pobres só usam a internet no celular.>
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Pelos critérios do Cetic, que considera usuário de internet quem fez algum acesso nos últimos três meses, 44% dos que costumam ficar longe por períodos mais longos -não entraram uma única vez na rede- são das classes D e E.>
Há diferentes tipos de desigualdade pelos parâmetros de conexão à rede. Existe a chamada desigualdade de primeiro nível -ter ou não acesso- e a desigualdade de segundo nível -acessar, mas com diversos graus de limitações.>
Localização, por exemplo, faz diferença até nos grandes centros urbanos, onde se concentram mais de 80% da população. Mesmo que o cidadão tenha dinheiro para contratar um bom serviço de internet, se estiver em um bairro periférico, pode não ter o mesmo serviço de bairros nobres.>
Segundo a União Internacional de Telecomunicações, o ideal de acessos por antena é de até 1.500. A média em São Paulo pode chegar ao pico de 3.500, de acordo com associações setoriais. Na periferia, o número salta a até 18 mil.>
A associação entre oferta limitada de serviço e baixa renda piora o cenário. Quem está no centro da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, pode assistir a lives no fim de semana. Nas periferias, porém, não é possível nem o download de uma apostila para impressão, como relata Geovana Firmino da Silva, 20, estudante da oitava série e moradora do bairro Acari.>
"Não tenho wi-fi em casa. Quando tenho condições, coloco recarga. Não dura nem uma semana: R$ 10 dão para uns três dias", diz a estudante. Praticamente só o WhatsApp funciona nesse contexto.>
A falta de banda larga fixa também limita os ganhos dela. Enquanto muitos jovens de classe média, com acesso facilitado à internet, oferecem produtos como roupas e bijuterias pelo Instagram, por exemplo, Geovana precisa ir à casa das pessoas para vender peças de vestuário.>
Na rotina antes da pandemia, uma conexão restrita -que permite apenas trocas de mensagens no WhatsApp ou publicação no Facebook- até podia ser contornada. Mas as restrições foram escancaradas pela Covid-19.>
Entre os exemplos mais evidentes da desigualdade digital estão as longas filas de trabalhadores informais, nas agências da Caixa, em busca do auxílio emergencial de R$ 600.>
Afora o fato de muitos não terem conta bancária e que o próprio aplicativo, o Caixa Tem, se mostrou instável, pesou a falta de acesso. As operadoras liberaram o uso do app mesmo para quem não tinha crédito no celular, mas os problemas de acesso persistiram.>
Segundo dados oficiais, 50 milhões de pessoas buscaram o auxílio. A IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado estima que esse número possa subir para 80 milhões.>
Nas áreas rurais, a restrição cresce de modo estratosférico.>
Em uma comunidade extrativista e ribeirinha próxima a Guariba, no noroeste de Mato Grosso, cerca de 400 moradores enfrentam um problema triplo pela impossibilidade de acesso. Nem todos puderam pleitear os R$ 600 do governo federal. As crianças não conseguem ter aulas pela internet. E a comunidade não pode negociar pela rede a venda dos estoques.>
A cidade mais próxima fica a 200 quilômetros, mas o município com agência da Caixa está a 500 quilômetros.>
"As pessoas idosas têm dificuldade de ir à rua, e, com o problema da pandemia, estamos nos resguardando, com medo de sair. Como represento a comunidade e trabalho na escola, a gente faz essas correrias [de tentar o benefício aos outros]. Mas é difícil, porque a maioria não tem aplicativo, nem celular, nem como baixar nada", diz Ailton Pereira dos Santos, presidente da associação de moradores.>
A escola, onde estudam 30 crianças, é o único ponto com internet, mas o funcionamento é limitado a algumas horas do dia. A comunidade não tem energia elétrica, e o acesso está atrelado ao uso do gerador.>
Nesse contexto, não há banda suficiente para atividades básicas de ensino a distância.>
"A internet não funciona todo dia, temos problemas de sinal, não conseguimos nem carregar arquivos", diz Santos.>
A maior parcela dos que nunca acessam a rede está na zona rural -41% (10,3 milhões de indivíduos) dessa população jamais usou a internet. Dos 5 milhões de estabelecimentos rurais do país, 72% não têm acesso, de acordo com o IBGE.>
Apesar de zonas fluviais e florestais terem impedimento à infraestrutura de cabos, o problema independe da região. Moradora de um lote de assentamento do MST com o marido e dois filhos em Itacurubi, na fronteira oeste gaúcha, a campesina Juliana de Vargas demorou duas semanas para conseguir o benefício do governo.>
"Para acessar o Caixa Tem, é um sofrimento danado. Fiquei mais de 15 dias tentando, já estava desistindo. Tinha que ficar com a tela sempre ligada, só que aqui preciso ficar igual abelha zanzando para conseguir sinal", afirmou, por mensagem de WhatsApp.>
Até a semana passada, o aplicativo exigia que o usuário não utilizasse outros recursos do celular no momento de espera na sala virtual, processo que poderia levar meia hora.>
"Depois de tanto tentar, acordei às três da madrugada, fiquei uma hora esperando para vir a mensagem dizendo que o sistema estava fora do ar. Mas consegui.">
No campo de estudos de inclusão digital, é cada vez mais evidente que a simples conexão à internet não basta.>
"O potencial que temos na internet, em especial neste momento, é desigualmente distribuído entre a população. Mesmo quem vence o acesso e passa a ser um usuário regular não necessariamente consegue fazer as mesmas atividades que outras faixas de renda ou de educação", diz Fábio Senne, coordenador de pesquisas TIC no Cetic.br.>
Apesar do avanço contínuo do uso de dispositivos móveis -226 milhões de acessos, segundo a Anatel, agência do setor-, a banda larga fixa é encarada como uma garantia da continuidade do serviço e não deve ter a importância menosprezada diante do apelo da velocidade de tecnologias móveis e da iminência do 5G.>
"Embora a conectividade móvel seja mais rápida, também oferece taxas de transmissão mais baixas do que as redes fixas; a pandemia mostrou como as pessoas com acesso fixo à internet estão em vantagem", afirmou em relatório a direção de redução de riscos de desastres no braço asiático das Nações Unidas.>
Política pública barra universalização do atendimento no país>
Apesar das promessas de universalização, as limitações de acesso à rede atravessam sucessivos governos no Brasil. Segundo especialistas, foram feitos apenas esforços pontuais e alterações regulatórias, sem que se estabelecesse uma política pública robusta e contínua.>
Na linha do tempo que sucede a privatização da telefonia no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1998, houve a criação do PNBL (Plano Nacional de Banda Larga) na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2014, foi aprovado o Marco Civil da Internet, no governo de Dilma Rousseff.>
Nos últimos anos, foram feitas alterações regulatórias, como a aprovação do novo marco das telecomunicações, em 2019, que modifica o modelo de concessão de 1997 e pode destravar investimentos em banda larga -mas, segundo especialistas, sem a garantia de ampliação da conectividade em zonas carentes.>
Pilar importante ao desenvolvimento das telecomunicações, a Anatel iniciou nos últimos anos o processo de construção do Pert (Plano Estrutural de Redes de Telecomunicações). O documento, que traz um diagnóstico da infraestrutura de banda larga, ganhou nova versão no mês passado.>
O plano identifica os principais desafios a partir das deficiências ainda existentes. Exemplos: quase 53% dos municípios sem fibra estão nas regiões Norte e Nordeste.>
O mercado de banda larga fixa possui 14.716 empresas, porém cinco grupos respondem por quase 70% dos assinantes. Apesar de não utilizar o sistema, o Brasil tem capacidade de satélite suficiente para adotar políticas públicas de incentivo à demanda em área remotas.>
"O plano sozinho não funciona sem definições de políticas públicas do governo federal. Não temos até agora um decreto do MCTIC [Ministério da Tecnologia] que defina quais são as localidades do país que devem receber investimentos", diz Flávia Lefèvre, conselheira do Comitê Gestor da Internet e integrante do coletivo Intervozes.>
Além disso, o novo marco das teles -a carta na manga do setor- tem travas por conflitos sobre os valores dos bens da União (infraestrutura de telefonia fixa) cedidos às operadoras no período de concessão, que já chegaram a variar de R$ 17 bilhões a R$ 100 bilhões.>
A Anatel contratou uma consultoria internacional para auxiliá-la no desenvolvimento do cálculo e na definição dos critérios.>
O país tem 5.570 municípios, e mais de 1.500 não tem rede de fibra óptica, que permitiria maior estabilidade em momentos com o atual, com registros de mudança radical no consumo de internet. Segundo a Anatel, não há um plano de "fibrar" o Brasil.>
Diante de entraves na gestão, da instabilidade política e da incerteza quanto às prioridades do governo, há um ponto consensual entre a Anatel, organizações civis e empresas do ramo: a utilização de fundos setoriais, como o Fust e o Fintel, para apoio à universalização da banda larga.>
O Fust, criado para a universalização de serviços de telecomunicações e com contribuição dos brasileiros, arrecada cerca de R$ 1 bilhão por ano. Os recursos não são aplicados em melhorias ao setor.>
Em proposta de projeto de lei do ano passado, hoje parada em instâncias superiores, a Anatel defende que o fundo seja desvinculado da telefonia fixa e revertido à banda larga.>
"Essencialmente é tirar as amarras do Fust e possibilitar que seja usado em qualquer setor de telecomunicações, que tenha um comitê gestor que faça a organização de projetos, que não precisam ser apenas de infraestrutura, mas de subsídio tarifário para auxiliar o pagamento de contas [de vulneráveis]", afirma Nilo Pasquali, superintendente de Planejamento e Regulamentação da Anatel.>
Segundo ele, outros países utilizam fundos de universalização para financiamento.>
Especialistas ressaltam que não se trata só de acesso.>
"Não basta conectar os não conectados, mas reduzir assimetrias e não criar castas de digitalização -a criança pobre do Brasil deve ter ensino a distância semelhante à criança rica do Brasil", diz Diego Canabarro, gerente sênior de Políticas Públicas da Internet Society para a América Latina.>
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