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É advogado e mestrando em Direito e Ciências Jurídico-Ambientais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Ícone da comédia, Paulo Gustavo abre nossos olhos para a tragédia

Quando uma figura pública traz à tona o estado horrendo das coisas, o luto coletivo deve ser convertido em luta coletiva

  • Pedro Sampaio Minassa É advogado e mestrando em Direito e Ciências Jurídico-Ambientais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Publicado em 06/05/2021 às 02h00
O ator Paulo Gustavo, 42 anos, morto por complicações da Covid no dia 4 de maio
O ator Paulo Gustavo, 42 anos, morto por complicações da Covid no dia 4 de maio. Crédito: Instagram/ Paulo Gustavo

Com a morte de Paulo Gustavo, ator e humorista que vivia nos últimos tempos o auge de sua carreira, parecia que cada brasileiro havia recebido a notícia da perda de um parente próximo. Muitos, na verdade, estavam de fato recebendo essa notícia. Apenas na terça-feira (4), foram mais de três mil. Quando a normalização da tragédia insiste em nos alienar, só temos um recurso para lhe fazer frente: a linguagem. É preciso falar, diariamente, como num mantra contra a loucura: a morte é normal; o morticínio não é.  

Primeiro, os avós. Depois, os pais. Agora, os filhos. No mundo científico, há quem diga que, se nada for feito, chegará a vez de enterrarmos os netos. Ao perdermos indivíduos de todas as faixas etárias, estamos perdendo o fio condutor da memória coletiva, as gerações. Sem gerações que dialogam, não existe possibilidade de país.

Sem memória coletiva, sem a reafirmação de que o que se vive não é normal, sairemos menores em números e em valores. O Brasil precisa compreender que decisões sufragadas nas urnas são sérias. Política importa, sim, porque hoje é dela, na sua pior versão, a necropolítica, que advém a morte em massa. O que decidimos para quatro anos afeta a vida de muitos, quando não de todos. É de uma decisão política que, ontem, o Brasul acumulou mais de 411 mil pessoas mortas por uma doença para a qual existe vacina. Vacina que foi ofertada ao país inúmeras vezes e recusada por um chefe de Estado. A esperança é a última que morre, mas devo-lhes dizer, compatriotas, que ela morrerá também se nada for feito.

Quando uma figura pública traz à tona o estado horrendo das coisas, o luto coletivo deve ser convertido em luta coletiva. Desde fevereiro, quando o primeiro brasileiro foi vacinado, toda e qualquer pessoa morta neste solo entra para conta de um governo que escolheu assistir às mortes, desassistindo-as. A Covid-19 avassala agora todos os lares, ricos e pobres, famosos e anônimos. Aliás, deveríamos inverter a lógica do anonimato que uma pandemia nos causa. Em lugar de destacar Paulo Gustavo dentro das estatísticas, como um brasileiro que poderia ter sido vacinado e salvo, devemos trazer à luz do conhecimento público os outros 411 mil mortos.

Escancarar a tragédia coletiva, acabar com o anonimato e a indigência. A começar por parar de arredondar os números. Quando o assunto é o morticínio é preciso exatidão, é preciso falar de números quebrados, de vidas quebradas, famílias quebradas. É preciso ir até a casa das unidades e dizer que, até o último boletim de terça-feira (4), já se foram 411.854 brasileiros. Esquecer os últimos quatro é contribuir para o apagamento da memória do sofrimento coletivo, estratégia que vem sendo utilizada desde o início da pandemia, com a ausência de dados oficiais.

A estatística, se afastada da ética, sucumbe à desumanização e se torna ferramenta útil a governos totalitários. A estatística deve ser utilizada, sim, mas contra a banalização da morte, na publicização da catástrofe brasileira. Paulo Gustavo entrou para o cordel de caixões que os governistas se recusaram a carregar nas costas, mas devo dizer que isso não é opção deles. Bolsonaro, seus pares e seus seguidores levarão para a história a sua digital amarga.

Triste povo de quem tiraram tudo, até a esperança, a última que morre, pela via do riso. Paulo, enquanto figura pública capaz de mover uma legião de fãs aos átrios dos palácios e dos órgãos públicos, terá velório restrito, e o povo brasileiro deverá chorar sozinho o luto coletivo, sem poder prestar uma última homenagem. Resgatemos todas as 411.854 histórias apagadas por uma escolha necropolítica, para que no futuro não seja necessário exumar tantos corpos para nos recobrar a memória. Na simbiose entre a tragédia e a comédia, que Paulo, o representante da segunda, consiga nos abrir os olhos para os responsáveis pela primeira.

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