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Permissão para policial emitir medida protetiva é constitucional?

Permissão para policial emitir medida protetiva é constitucional?

Mudança na Lei Maria da Penha permite que delegados e policiais determinem o afastamento do suposto agressor do lar caso representem risco às mulheres. Antes, apenas juízes tinham esse poder

Publicado em 7 de junho de 2019 às 18:29

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Medida protetiva agora pode ser emitida por delegados e policiais. (Amarildo)

 

SABER O QUE É CERTO E NÃO O FAZER É COVARDIA

Raphael Pereira da Fonseca é professor e especialista em Direito Penal e Processual Penal

Analisando a atual conjuntura social brasileira no que se refere à violência contra a mulher no âmbito doméstico, familiar e afetivo, é incontestável a percepção de que a vida e a incolumidade de nossas mulheres estão em risco iminente. É interessante que mesmo após a criação da Lei 11340/06, popularmente conhecida como Maria da Penha, há mais de uma década, vislumbra-se um aumento dos índices de violência – física, psicológica, financeira – contra a mulher, o que traz à tona a reflexão de que o modelo de combate tem se demonstrado ineficiente.

Nesse contexto, foi publicada no dia 13 de maio a lei ordinária 13.827, que acrescentou à Lei Maria da Penha o artigo 12-C. Em síntese, ele autoriza a concessão de medida protetiva de urgência pelos delegados de polícia e também por demais agentes policiais, quando não houver delegado disponível no momento da denúncia da violência. Diante dessa alteração, eclodiram inúmeros questionamentos acerca da constitucionalidade – e também da própria necessidade – dessa permissão. Tal modificação ampliativa de atribuição concessiva de medida encontra amparo em nosso ordenamento pátrio? Indubitavelmente, sim.

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Nosso Direito por muitas vezes “anda à reboque” do fato social, apresentando uma baixa efetividade, que junto à burocracia, vitima mulheres todos os dias

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Primeiramente, é importante ressaltar que não há em nosso ordenamento jurídico constitucional a denominada reserva jurisdicional para a concessão de medidas cautelares, sendo perfeitamente possível que o Poder Legiferante outorgue a outras autoridades tais medidas.

Não podemos nos olvidar que situação similar à da concessão de medidas já é verificada em nosso Direito, como a possibilidade de se conduzir e firmar acordos de delação premiada (ADI 5508) ou ainda a possibilidade das autoridades policiais realizarem a Ação Controlada (flagrante diferido ou organizações criminosas, à luz da lei 12.850/13.

Cabe ressaltar ainda que se a autoridade policial no Brasil pode decretar a prisão em flagrante – artigos 301 e 302 do Código de Processo Penal pátrio –, verdadeira medida cautelar privativa da liberdade de locomoção, bem como conceder a liberdade provisória mediante pagamento de fiança (art. 322 do codex processual), não permitir que o delegado conceda uma medida antecipatória de proteção à vida e à incolumidade apresenta-se, no mínimo, assimétrico, desarrazoado e temerário.

Insta frisar ainda que tal modernização legislativa não permite à polícia que decrete todas as medidas cautelares previstas na lei, mas somente aquelas inerentes à tentativa preservação imediata – como o afastamento do ofensor ou encaminhamento da ofendida à casa abrigo.

Finalmente, não se verifica nenhum prejuízo de controle pelo juiz – que deverá ser comunicado em 24h sobre a concessão da medida – nem afetação do papel de custus legis pelo Ministério, que terá ciência da concessão pela medida concomitantemente (conforme depreende-se do parágrafo 2º do artigo 12-C da Lei).

Em suma, é cristalino que o nosso Direito por muitas vezes “anda à reboque” do fato social, apresentando uma efetividade por muitas vezes inoperante, que associada à uma burocracia antiquada acaba por vitimar mulheres todos os dias. Como dizia Confúcio, filósofo chinês: “Saber o que é certo e não o fazer é covardia”; nesse caso, com as nossas mulheres.

ALÉM DE FERIR CONSTITUIÇÃO, MEDIDA É DESNECESSÁRIA

Daniel Peçanha Moreira é juiz de Direito e presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Espírito Santo

Vivemos em um Estado Democrático de Direito, onde qualquer lei deve observar a nossa bela Constituição Federal. O Congresso Nacional aprovou, recentemente, a Lei 13827/2019, trazendo modificações na lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha. Uma excelente inovação da referida lei é a criação de um banco de dados, mantido pelo Conselho Nacional de Justiça, no qual devem ser cadastradas todas as medidas protetivas, possibilitando um melhor controle do efetivo cumprimento e também com mais facilidade a prática de atos anteriores pelo infrator.

Porém, no até elogiável ímpeto de melhorar a lei e lhe dar maior eficácia, o legislador acabou, ao meu ver, não observando a Constituição Federal, violando o Princípio da Reserva da Jurisdição, especificamente os incisos XI (“a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”) e LIV (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”), do art. 5º da CF.

Foi inserido no artigo 12-C, da Lei Maria da Penha: “Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida: I - pela autoridade judicial; II - pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou III - pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia”.

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Peca a lei ao inverter a ordem legal, deixando a apreciação judicial da medida para momento posterior. Cria-se um perigoso precedente

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Ou seja, a medida protetiva de afastamento do suposto ofensor do lar pode ser imediatamente aplicada pelo delegado de polícia ou, na falta desse, pelo próprio policial. Deve-se sempre ter em mente que o afastamento do lar é uma medida de extrema gravidade e requer prévia determinação judicial. A entrada no domicílio deve ser precedida de uma autorização judicial, salvo em estado de flagrância.

O fato de não ser o município sede de comarca não priva o cidadão da prestação jurisdicional, sempre exercida por um juiz, inclusive em regime de plantão, fora do horário de expediente forense. Registro que o texto legal não exige estado de flagrância para aplicação da medida pela autoridade policial.

Por isso a medida, além de inconstitucional, demonstra-se desnecessária, vez que poderia aguardar apreciação judicial e, caso esteja acontecendo o delito, o policial já teria o dever de conduzir o autor do fato para a delegacia, para lavrar o auto de prisão em flagrante, e o §2º do mesmo artigo 12-C prevê que não se concederá liberdade provisória em caso de risco à integridade física da vítima.

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Por fim, peca a lei ao inverter a ordem legal, deixando a apreciação judicial da medida para momento posterior. Ou seja, primeiro aplica-se a medida e somente depois leva-se ao juiz. Cria-se um perigoso precedente. Uma democracia deve sempre ter suas instituições funcionando plenamente, dentro de suas atribuições e competências. Por essas razões que acredito na procedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade, já proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros.

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