Publicado em 9 de dezembro de 2025 às 06:44
Esther dormia nas ruas de Lagos quando uma mulher se aproximou com a promessa de tirá-la da Nigéria e levá-la à Europa, com emprego e moradia.>
Sonhava com uma nova vida, sobretudo no Reino Unido. Expulsa de um lar adotivo violento e abusivo, tinha pouco a que se apegar. Ao deixar Lagos, em 2016, e cruzar o deserto rumo à Líbia, no norte da África, não imaginava a trajetória traumática que enfrentaria, marcada por exploração sexual e por anos de pedidos de asilo em diferentes países.>
A maioria dos imigrantes irregulares e solicitantes de asilo é composta por homens — 70%, segundo a Agência Europeia para o Asilo (EUAA, na sigla em inglês) —, mas cresce o número de mulheres como Esther, que chegam ao continente em busca de proteção.>
"Vemos um aumento de mulheres viajando sozinhas, tanto na rota do Mediterrâneo quanto na dos Bálcãs", afirma Irini Contogiannis, da ONG International Rescue Committee, na Itália.>
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O relatório de 2024 da entidade registrou alta anual de 250% no número de mulheres adultas desacompanhadas que chegaram ao país pela rota dos Bálcãs, uma das principais rotas migratórias de entrada na Europa, enquanto o total de famílias cresceu 52%.>
As rotas migratórias são notoriamente perigosas. Em 2024, a Organização Internacional para as Migrações (IOM, na sigla em inglês), agência da Organização das Nações Unidas (ONU), contabilizou 3.419 mortes ou desaparecimentos de migrantes na Europa, o ano mais letal já registrado.>
Para as mulheres, soma-se o risco de violência sexual e exploração, como ocorreu com Esther após ser traída por quem lhe prometera uma vida melhor.>
"Ela me trancou num quarto e levou um homem. Ele fez sexo comigo à força. Eu ainda era virgem", diz Esther. "É isso que fazem… viajam por aldeias na Nigéria para pegar meninas, levá-las para a Líbia e transformá-las em escravas sexuais.">
"As experiências delas são diferentes e, muitas vezes, mais arriscadas", afirma Ugochi Daniels, da IOM, à BBC. "Mesmo mulheres que viajam em grupo raramente têm proteção consistente, o que as expõe ao abuso de coiotes, traficantes ou outros imigrantes.">
Muitas mulheres conhecem os riscos, mas seguem viagem levando preservativos ou usando métodos contraceptivos caso sejam estupradas no percurso.>
"Todos os imigrantes têm de pagar a um contrabandista", diz Hermine Gbedo, da rede antitráfico Stella Polare. "Mas de mulheres se costuma esperar que ofereçam sexo como parte do pagamento.">
Gbedo apoia migrantes em Trieste, cidade portuária no nordeste da Itália que há muito funciona como ponto de passagem e principal porta de entrada na União Europeia para quem cruza pelos Bálcãs. Dali, seguem para países como Alemanha, França e Reino Unido.>
Após quatro meses de exploração na Líbia, Esther fugiu e atravessou o mar Mediterrâneo em um bote inflável. Foi resgatada pela guarda costeira italiana e levada à ilha de Lampedusa, mais próxima da costa da Tunísia (África) do que da Itália (Europa). Ela pediu asilo três vezes antes de receber o status de refugiada.>
Solicitantes de países considerados seguros costumam ter o pedido rejeitado. Na época, a Itália classificava a Nigéria como insegura, mas mudou a avaliação dois anos atrás, em meio ao endurecimento das regras migratórias em toda a Europa depois do grande fluxo de 2015-16. Desde então, pressões por novas restrições só aumentaram.>
"É impossível sustentar a migração em massa, não tem como", afirma Nicola Procaccini, deputado do governo de direita da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni. "Podemos garantir uma vida segura às mulheres que realmente estão em perigo, mas não a todas.">
"Temos de ser racionais", diz Rakib Ehsan, pesquisador sênior do think tank (centro de estudos e debates) conservador Policy Exchange. "Precisamos priorizar mulheres e meninas que estejam em risco imediato em territórios afetados por conflitos, onde o estupro é usado como arma de guerra.">
Hoje, isso não ocorre de forma consistente, avalia Ehsan. Embora se declare solidário às mulheres que enfrentam rotas perigosas rumo à Europa, afirma que "a chave é a compaixão controlada".>
Mas muitas mulheres que chegam de países considerados seguros relatam que sofreram abusos por serem mulheres e que isso tornou a permanência no país de origem impossível.>
Foi o caso de Nina, 28, do Kosovo (sudeste da Europa).>
"As pessoas acham que tudo vai bem em Kosovo, mas não é verdade", afirma. "As coisas são terríveis para as mulheres.">
Nina conta que ela e a irmã foram abusadas sexualmente pelos namorados, que as forçaram à exploração sexual.>
Um relatório de 2019 da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) indica que 54% das mulheres em Kosovo sofreram violência psicológica, física ou sexual de parceiros íntimos desde os 15 anos.>
Segundo a Convenção de Istambul, do Conselho da Europa, mulheres perseguidas por violência de gênero têm direito a asilo. A norma foi reforçada por uma decisão histórica do principal tribunal europeu em 2024. A Convenção define violência de gênero como psicológica, física e sexual, incluindo a mutilação genital feminina (FGM, na sigla em inglês).>
No entanto, os termos ainda não são aplicados de forma uniforme, segundo apontam organizações de apoio.>
"Muitos agentes de asilo em campo são homens sem formação suficiente para lidar com um tema tão delicado [como a mutilação genital feminina], tanto do ponto de vista médico quanto psicológico", afirma Marianne Nguena Kana, diretora da End FGM European Network.>
Ela acrescenta que pedidos são negados com base na suposição equivocada de que, por já terem passado pela FGM, essas mulheres não correm mais risco. "Já ouvimos juízes dizendo: 'Você já foi mutilada, então não é perigoso voltar ao seu país, porque não podem fazer isso com você de novo'", relata.>
Em casos de violência sexual, explica Carenza Arnold, da organização britânica Women for Refugee Women, a prova costuma ser mais difícil, porque o abuso não deixa marcas visíveis como a tortura física, e tabus culturais tornam o relato ainda mais complexo.>
"As mulheres muitas vezes são apressadas no processo e podem não revelar ao oficial de imigração, que acabaram de conhecer, a violência sexual que sofreram", diz Arnold.>
Segundo a Organização Internacional para as Migrações (IOM), grande parte da violência enfrentada por mulheres ocorre durante a viagem. "Mulheres normalmente fogem de violência sexual praticada por parceiros em seu país de origem e, durante o trajeto, enfrentam o mesmo novamente", afirma Daniels.>
Foi o que aconteceu com Nina e a irmã ao fugirem dos ex-companheiros em Kosovo rumo à Itália. Viajando com outras mulheres, cruzaram florestas da Europa Oriental tentando evitar as autoridades. No caminho, relatam ter sido atacadas por homens migrantes e contrabandistas.>
"Mesmo nas montanhas, no escuro, dava para ouvir os gritos", lembra Nina. "Os homens vinham com lanternas, iluminavam nossos rostos, escolhiam quem queriam e levavam para dentro da mata. À noite, eu ouvia minha irmã chorando, pedindo ajuda.">
Nina e a irmã disseram às autoridades italianas que seriam mortas pelos ex-namorados se voltassem ao Kosovo e receberam asilo.>
A luta de Esther para obter proteção foi mais longa. Ela pediu asilo pela primeira vez na Itália em 2016, mas, após longa espera, seguiu para a França e depois para a Alemanha, onde teve os pedidos negados. Pelo Regulamento de Dublin, da União Europeia, o pedido de asilo deve ser apresentado no primeiro país europeu de entrada.>
Esther recebeu o status de refugiada na Itália em 2019.>
Quase uma década depois de deixar a Nigéria, ela se pergunta se a vida atual na Itália compensou o sofrimento vivido no caminho: "Nem sei o motivo de ter vindo para cá".>
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