Publicado em 17 de outubro de 2023 às 11:29
O Brasil tinha 236,4 mil pessoas em situação de rua inscritas no Cadastro Único (CadÚnico, registro do governo da população de baixa renda do país) em 2022. >
Isso significa que pelo menos 1 em cada mil brasileiros estava vivendo nas ruas no ano passado, segundo relatório divulgado em setembro pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).>
Mas a população de rua total do Brasil deve ser ainda maior, alerta Rita Cristina de Oliveira, secretária-executiva do MDHC – ou a "número 2" da pasta liderada por Silvio de Almeida.>
"Pela condição mesmo de situação de rua – de pessoas em grande parte indocumentadas –, a gente estima que esses números estejam subnotificados", diz Oliveira, em entrevista à BBC News Brasil.>
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"Porque o CadÚnico pressupõe que as pessoas tenham tido não só acesso aos serviços públicos da rede, mas que tenham também documentos", afirma a defensora pública de carreira, que em 2021 também fez parte da Comissão de Juristas Negros e Negras, instituída pela Câmara dos Deputados.>
"Como sabemos que boa parte dessa população não tem acesso ao serviço de documentação ou teve documentação perdida, extraviada, entendemos que o cadastro não lê toda essa população." >
Contar devidamente essas pessoas, através de um Censo específico, será uma das medidas do plano que o governo federal pretende lançar até novembro para a população em situação de rua. >
O pacote deve contar com uma série de eixos: habitação; trabalho, renda e cidadania; combate à violência institucional; assistência social; produção de dados; saúde; e fortalecimento da rede de atendimento são os principais deles, segundo a secretária-executiva.>
Ainda não há, no entanto, orçamento definido para a execução do conjunto de medidas.>
"Como o Orçamento de 2024 não está fechado, as pastas estão definindo seus recursos, mas obviamente, pelo tamanho do problema, sabemos que vai ser um aporte robusto", diz Oliveira.>
Entre as pastas que deverão estar envolvidas na execução do plano, além do MDHC, estão Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome; Saúde; Trabalho e Emprego; Justiça; Cidades; Educação; Gestão e Inovação em Serviços Públicos; e Cultura.>
À BBC News Brasil, a secretária-executiva do ministério falou ainda sobre o inquérito aberto pelo Ministério Público Federal para investigar o envolvimento do Banco do Brasil na escravidão e preferiu não comentar o impasse quanto à recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidas Políticos. >
O lançamento do plano atende à decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou em julho que municípios, Estados e a União apresentem medidas específicas voltadas à população em situação de rua. A decisão foi uma resposta a uma ação movida pelos partidos Rede e PSOL e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).>
Para o governo federal, o STF deu 120 dias para a apresentação de um plano para a "efetiva implementação" da Política Nacional para a População de Rua, criada em 2009.>
Esse prazo vence em 24 de novembro mas, segundo a secretária-executiva do MDHC, a intenção do governo é lançar seu pacote antes disso, embora ainda não haja uma data definida.>
"Uma data precisamente não tem, porque a ideia é que [o plano] seja apresentado pelo próprio presidente Lula. Então vai depender da agenda do presidente. Mas obviamente vai ser dentro do prazo e a ideia que seja até antes", diz Oliveira.>
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) passou por cirurgias de quadril e pálpebra em 29 de setembro e deve ficar três semanas trabalhando na residência oficial do Palácio do Alvorada.>
Segundo a secretária-executiva do MDHC, a habitação deve ser o eixo principal do pacote a ser anunciado pelo governo. >
"É o direito essencial que vai garantir todos os outros direitos para enfrentar o problema das pessoas da situação de rua", diz Oliveira. >
Nessa área, o governo planeja ampliar a oferta de locação social, com a disponibilização de moradias para aluguel a preços subsidiados. >
Também pretende criar cotas do programa Minha Casa, Minha Vida para pessoas em situação de rua. >
E oferecer uma modalidade de aluguel social assistida, acompanhada de políticas de cidadania e saúde. >
Essa vertente será voltada para pessoas "com perfil crônico de rua", diz a representante do MDHC, que são aquelas que moram nas ruas há mais tempo e muitas vezes sofrem de problemas de saúde mental, associados ao abuso de substâncias como álcool e drogas. >
O modelo é inspirado na metodologia "Housing First" (Moradia Primeiro), adotada por diversos países para atender pessoas em situação de rua. >
No Brasil, municípios como Curitiba e São Paulo já realizaram políticas inspiradas nesta estratégia.>
No eixo de emprego e renda, o governo planeja fortalecer iniciativas de cooperativismo; fechar acordos de cooperação com grandes empregadores para promover acesso a vagas de emprego para a população de rua; e oferecer capacitação e qualificação profissional em parceria com federações e universidades, enumera a secretária-executiva.>
"São esses os exemplos [de políticas contidas no plano] que eu posso dar nesse momento", diz Oliveira. >
"Obviamente, existe um compromisso nosso de que o próprio presidente ou ministro [Silvio Almeida] anunciem as ações assim que o plano for fechado.">
A secretária-executiva antecipa, porém, que deve ser lançado nos próximos dias um decreto instituindo o grupo de trabalho que vai definir a metodologia do Censo da população de rua.>
A ideia é fazer ainda esse ano um pré-teste da coleta de dados e realizar os primeiros pilotos no primeiro semestre de 2024. Só então será definida uma data para o início do Censo. >
O IBGE (Instituto Brasileiro de geografia e Estatística) realizou em 2022 – com dois anos de atraso, devido à pandemia e a cortes de verba – seu Censo Demográfico. >
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A pesquisa contou 203 milhões de brasileiros, mas, como a coleta contempla apenas os domicílios, as pessoas em situação de rua não são incluídas nessa contagem. >
Enquanto não existam dados censitários nacionais sobre essa população, o governo utiliza para elaboração de seu plano estimativas preliminares.>
Além do diagnóstico lançado em setembro pelo MDHC com base nos dados do Cadastro Único, o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) publicou em dezembro de 2022 um estudo em que estimou a população em situação de rua no Brasil em 281,5 mil pessoas, a partir de dados oficiais informados por gestões municipais.>
Pela estimativa do Ipea, o número de pessoas vivendo nas ruas mais do que triplicou no Brasil em uma década – eram 90,5 mil pessoas nessa situação em 2012, nas contas do instituto. >
Essa "explosão" no número de pessoas vivendo nas ruas é muito superior ao crescimento vegetativo da população, que foi de apenas 6,5% entre 2010 e 2022, segundo o Censo do IBGE. >
Nesse cenário, o principal desafio para a execução do plano do governo federal para a população de rua é a articulação entre União, Estados e municípios, avalia a secretária-executiva do MDHC.>
"Todos nós sabemos que as ações só vão poder ser implementadas plenamente a partir do diálogo com os entes nacionais, especialmente os municípios", diz Oliveira. "Então esse é um desafio, mas nós estamos confiantes que todos entenderam, inclusive a partir da decisão do Supremo.">
A representante do ministério afirma que esse dialogo deverá ser feito "independente das diferenças partidárias ideológicas". >
O diagnóstico divulgado em setembro com base em dados do CadÚnico revelou, por exemplo, que 40% da população de rua total do Brasil se encontra no Estado de São Paulo, atualmente governado por Tarcísio de Freitas (Republicanos), ex-ministro do governo Jair Bolsonaro (PL). >
E mais da metade desse contingente está na capital paulista, cuja prefeitura tem à frente o emedebista Ricardo Nunes. >
Segundo Oliveira, apesar do tamanho da população paulista em situação de rua, não deve haver políticas específicas para o Estado ou para a Cracolândia paulistana. >
Isso porque as políticas não estão sendo pensadas para espaços ou governos específicos, mas considerando os problemas da população em situação de rua, diz ela. >
"É óbvio que São Paulo, pela concentração de pessoas em situação de rua, tem a nossa atenção", afirma a secretária-executiva.>
"Se temos lá um número relevante de pessoas em situação de rua com uma problemática aguda de uso abusivo de álcool e droga, a política que estamos pensando para pessoas em situação de rua com uso abusivo de álcool e drogas vai ser oferecida para São Paulo, assim como vai ser oferecida para todas as capitais que têm o mesmo problema", acrescenta.>
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Segundo a secretária, o plano do governo deverá ser norteado por dados, e seu cumprimento será avaliado por metas e indicadores, que serão disponibilizados numa plataforma pública, o Observatório Nacional de Direitos Humanos (Observa DH), que está para ser lançado. >
"Obviamente, a redução da população em situação de rua é um indicador fundamental da eficácia do plano", antecipa Oliveira. >
Ela avalia, porém, que ainda é cedo para falar em números.>
A BBC News Brasil também perguntou a Rita Cristina de Oliveira sobre outros temas relevantes que estão sendo tocados pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.>
Com relação ao inquérito aberto pelo Ministério Público Federal (MPF) para investigar o envolvimento do Banco do Brasil (BB) na escravidão e no tráfico de escravizados no século 19, a secretária reafirma que a pasta deve participar de reunião sobre o tema no dia 27 de outubro, junto ao MPF, BB, Ministério da Igualdade Racial e ao grupo de historiadores que propôs a ação.>
"O ministério tem, desde o início dessa gestão, uma preocupação com a memória e verdade, e também medidas de reparação histórica em relação à escravidão e ao tráfico transatlântico", diz.>
"Tanto que, ineditamente, criou uma coordenação geral específica para tratar desse tema.">
A Coordenação-Geral de Memória e Verdade sobre a Escravidão e o Tráfico Transatlântico, integrada ao MDHC, é liderada pela história da África Fernanda Thomaz desde março. A coordenadoria tem se dedicado a temas como a preservação e memória do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, principal porto de entrada de africanos escravizados no Brasil e nas Américas.>
Questionada se a política de reparação histórica em gestão na pasta poderá eventualmente incluir compensação financeira para descendentes de escravizados – como estudado, por exemplo, pelo Estado da Califórnia, nos EUA – a secretária descarta essa possibilidade no momento atual. >
"Reparação financeira não está na linha de avaliação agora, até porque isso dependeria de alterações normativas que não estão nem no nosso alcance", diz Oliveira.>
"O passivo que nós temos em relação à escravidão e ao tráfico [de escravizados] é trazer à tona esses registros", avalia a "número 2" dos Direitos Humanos e Cidadania.>
"O que a gente ainda não fez enquanto país é trazer essa história, com todos os seus atores, à tona para uma discussão importante que a sociedade precisa fazer em relação ao tamanho dessa reparação. Então é isso que vamos fazer como política. Vamos trazer à tona essa história", afirma.>
"Agora, o alcance dessa reparação é um debate que ainda vai ser colocado.">
Quanto à recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidas Políticos (extinta em dezembro de 2022, no apagar das luzes da gestão Bolsonaro) haveria um impasse, segundo reportado pela imprensa nas últimas semanas, com base em informações de bastidores.>
Ativistas de direitos humanos e familiares de mortos e desaparecidos pressionam para que o governo recrie a comissão até 25 de outubro, data que marca o assassinato do então diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog. Mas o Planalto teme desgaste com os militares.>
Questionada sobre o impasse, a secretária-executiva preferiu não se manifestar.>
"Sobre esse tema, eu não tenho nenhuma manifestação a dar, porque essa é uma questão que está sob avaliação atualmente da Presidência da República e da Casa Civil. Então o que tinha que ser feito pelo ministério já foi feito e não tenho mais nenhum comentário a fazer sobre isso.">
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