Publicado em 19 de março de 2024 às 12:27
Uma imagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — um líder de esquerda — com elementos do nazismo passou a circular em redes sociais como o X (antigo Twitter) depois da comparação feita por Lula entre a guerra em Gaza e o holocausto.>
As montagens de Lula com o bigode de Hitler e rodeado de suásticas, no entanto, não se tratavam de críticas ou ironia ao discurso do presidente brasileiro, e nem de usuários falsos que tentam prejudicar a imagem de Lula — mas sim de manifestações de apoio. >
Elas foram publicadas por extremistas que abraçam ideias políticas de diferentes vertentes conforme elas sejam convenientes às suas visões pessoais.>
"Usuários da rede, criaram, inclusive, o termo 'lulismo esotérico' [fazendo uma relação direta com o 'hitlerismo esotérico', interpretações místicas dadas ao nazismo no contexto do pós-guerra] e estão produzindo propaganda", afirma a pesquisadora Michele Prado, pesquisadora do Monitor do Debate Político no Meio Digital da USP (Universidade de São Paulo).>
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Embora as ideias sejam aparentemente antagônicas, de acordo com a pesquisadora, o episódio se trata de um exemplo claro do conceito de "polinização cruzada".>
Na natureza, esse termo se refere a um processo em que o pólen é transferido entre flores de plantas diferentes para promover a fertilização e diversidade genética.>
Já no contexto discurso político, é usado para ilustrar a troca ou mistura de ideias extremistas entre grupos de espectros políticos aparentemente antagônicos.>
E o presidente de esquerda brasileiro associado ao nazismo não é o único exemplo, como mostraremos ao longo desta reportagem.>
Em 2020, Christopher Way, diretor do FBI, usou o termo "salad bar ideology" (algo como "ideologia self-service"), para descrever essa mistura de ideias que culminam em um extremismo violento. >
Segundo Way, para quem trabalha com antiterrorismo, tentar encaixar os discursos em categorias bem definidas é um desafio.>
"Uma das coisas que vemos cada vez mais são pessoas fazendo misturas confusas, uma variedade de ideologias diferentes.">
De acordo com David Magalhães, coordenador do Observatório da Extrema Direita, um dos objetivos desses grupos extremistas é fazer oposição às ideologias dominantes.>
"Temos um conjunto de ideias apoiadas por uma maioria e sustentadas em pilares liberais, como política parlamentar, tripartição de poder, respeito pelos direitos das minorias e a definição do papel do estado na economia. Grupos extremistas, sejam de direita ou de esquerda, buscarão desafiar essas bases no espectro ideológico.">
Esses grupos, de acordo com os pesquisadores ouvidos na reportagem, escolhem partes de diferentes ideologias de forma a criar um conjunto que responda à crenças e queixas pessoais - que podem ser legítimas ou não.>
"Comunidades de extrema direita, por exemplo, geralmente odeiam a ideia do Islã, mas ao mesmo tempo, algumas abraçam partes do islamismo radical. Temos comunidades de extrema direita antissemitas que estão apoiando o Hamas nos ataques de 7 de outubro como um meio de incentivar uma 'limpeza étnica'", exemplifica>
O pesquisador menciona, ainda, a existência de um grupo neonazista cultista [satanista] que usa elementos islâmicos para se descrever e apoia ataques terroristas que ocorreram no Ocidente.>
Apesar da mistura de ideias aparentemente opostas, há também pontos de convergência entre os extremistas de diferentes "linhas". Entre eles, os pesquisadores citam: a crença em teorias da conspiração, posicionamentos anti-LGBTQIA+ e o antissemitismo.>
Moustafa Ayad, diretor-executivo do ISD (Institute for Strategic Dialogue), explica as imagens de Lula associadas ao nazismo como uma oportunidade usada por extremistas para alcançar pessoas de grupos diferentes. >
"Em certos casos, ao manifestar uma oposição a Israel, eles acentuam essa postura como uma declaração contra a fé judaica em sua totalidade.">
"Hitler é considerado um reflexo desse pensamento. Se uma figura pública como Lula adota uma posição que pode provocar essa resposta, os extremistas veem isso como uma oportunidade estratégica para interseccionar e disseminar essas ideias de maneira mais ampla. É uma oportunidade de aproximá-los de uma audiência específica que eles não podiam alcançar antes.">
Michele Prado menciona o grupo 'Nova Resistência' como mais um exemplo de polinização cruzada no cenário brasileiro.>
"Trata-se de um grupo neo-fascista que incorpora uma variedade de conceitos provenientes de diversas ideologias extremistas, formando uma abordagem única. Essa estratégia, inclusive, visa ampliar sua base de apoio e recrutar mais adeptos.">
Na avaliação de Prado, a Nova Resistência mistura conceitos de extrema esquerda, como o nacional-revolucionarismo (transformação radical da sociedade), terceiro-mundismo (cooperação entre países em desenvolvimento), nacional-bolchevismo (síntese entre ideias bolcheviques e nacionalismo), até extrema direita violenta, incorporando conceitos neo-fascistas (ressurgimento de ideias associadas ao fascismo).>
"A Nova Resistência faz esse extremismo híbrido, e isso se reflete inclusive nos números, como eles conseguiram aumentar consideravelmente o número de seguidores no canal deles, no YouTube. E os discursos deles estão muito disseminados, inclusive, em veículos de mídia alternativa da esquerda. O grupo é um bom exemplo, um exemplo assim do extremismo híbrido, onde ocorre essa polinização cruzada de forma estrutural, inclusive.">
Prado aponta qe o o grupo também expressa discursos antissemitas, antiliberalismo político e se coloca contra pautas LGBTQIA+.>
Uma das figuras públicas que já demonstrou afinidade com o grupo foi o deputado Robinson Farinazzo (PDT-SP), que em 2022 posou para uma foto na Avenida Paulista ao lado de militantes que seguravam uma bandeira com uma estrela verde e as letras "NR" ao centro.>
O grupo, inclusive, apoiou campanhas de candidatos do PDT, como a o próprio Farinazzo, de Cabo Daciolo e Aldo Rebelo (que tentaram vagas no Senado por Rio de Janeiro e São Paulo).>
A BBC News Brasil procurou o grupo e os políticos citados, mas não obteve resposta.>
Michele Prado aponta que há indícios da chamada "polinização cruzada" desde os anos 90, quando a internet começou a ser democratizada.>
"Na época, os ideais extremistas eram compartilhados em fóruns online de forma mais unilateral. Você tinha um produtor de conteúdo e um receptor passivo. E uns dos primeiros grupos a utilizar essa ferramenta da internet foram os neonazistas, que entenderam o quanto aquilo seria um instrumento para amplificar suas ideias além de fronteiras físicas.">
O fenômeno tomou uma nova forma, de acordo com a pesquisadora, entre os anos 2000 e 2010, quando as pessoas começam a ser produtoras, mas ainda em um ritmo menor.>
"A partir disso o Estado Islâmico, por exemplo, conseguiu radicalizar pessoas online, inclusive de países em paz.">
Para Prado, o cenário atual é mais complexo, já que com as redes sociais, os indivíduos não são apenas consumidores passivos de conteúdo extremista, mas também produtores ativos.>
"Hoje, enfrentamos um cenário chamado de extremismo pós-organizacional, onde não existem mais estruturas hierárquicas como antes, nos anos 2000. Para ser um extremista afiliado a um grupo não é mais necessário passar por processos de iniciação ou ter contato com um radicalizador.">
É aí, aponta a pesquisadora, que surgem interações antes pouco prováveis entre extremistas que possuem ideologias que podem parecer opostas, mas que têm pontos convergentes.>
A falta de um líder claro, analisa Moustafa Ayad, faz com que cada influenciador possa agir online isoladamente, sem a necessidade de um grupo por trás dele.>
"Alguns deles estão vinculados a grupos formais, mas escolhem e selecionam entre os grupos aos quais estão afiliados, ou afirmam não ter filiação e estão apenas promovendo uma ideologia.">
As redes sociais tornaram mais fácil o acesso a discursos extremistas.>
Se antes uma pessoa precisava de muita pesquisa para chegar a comunidades extremistas — e poderia passar sua vida sem saber da existência delas — agora pode ser impactada facilmente por diferentes ideais violentos sem dificuldade. >
Espaços não vigiados, como o Telegram, são câmaras de eco e muito propícios para a proliferação de ideias extremistas, aponta David Magalhães.>
O pesquisador conta um exemplo de polinização cruzada que detectou ao acompanhar grupos dentro dessa rede social durante a pandemia.>
"A direita criticava as ‘big pharmas' [grandes farmacêuticas], mas com uma visão populista, que acredita que o poder está sendo controlado por uma elite (corrupta) e há a necessidade de devolver o poder ao povo (puro). Em certa medida, essas ideias encontraram correspondência com discurso de parte da esquerda que tem um discurso anticapitalista, contra os grandes conglomerados econômicos.">
Moustafa Ayad complementa dizendo que há uma dificuldade em barrar grupos com discursos criminosos.>
"Lembro-me de uma repressão a grupos brasileiros no Telegram devido à promoção de ideologias neonazistas. Mas essas comunidades persistem, uma vez que é viável derrubar canais, mas eles se reconstituem rapidamente. Ao alterarem seus nomes ou se desvincularem de uma estrutura formalizada, conseguem recriar-se de maneira constante.">
A falta de clareza também dificulta o monitoramento de pesquisadores e agentes de segurança pública que atuam no combate ao terrorismo e ataques violentos.>
"Como as autoridades policiais, por exemplo, definiriam uma possível ameaça que mistura neo-nazismo, mostrando forte apoio ao Terceiro Reich, mas se identificam como pessoas de esquerda, propagando também ideias do nacional-socialismo? É complexo, e muitas vezes a confusão impede que sejam classificados como perigosos", diz Ayad.>
Ainda que sejam grupos minoritários, Ayad aponta que esses extremistas podem influenciar outros a cometerem ataques.>
"Esse extremismo composto, inclusive, foi notado nas evidências de investigações dos criminosos que cometeram alguns ataques a escolas no Brasil", afirma Michele Prado.>
"É o caso de Cambé, no Paraná, onde o jovem que cometeu os crimes havia se radicalizado em mais de um tipo de ideologia.">
Os ataques, conforme explicam os pesquisadores, não são necessariamente em massa, direcionados a grandes grupos como são os que focam em escolas. >
Podem ser também direcionados a indivíduos, com motivação ideológica, de raça ou de gênero, conclui Prado.>
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