Publicado em 9 de abril de 2020 às 16:41
Entre cenouras, leite, lentilha, produtos de higiene e outros itens de cesta básica, uma surpresa: livros. Para enfrentar o isolamento social durante a pandemia do novo coronavírus, a prefeitura de Montevidéu distribuiu 5.000 obras literárias a pessoas em situação social vulnerável. >
O Uruguai tem 424 casos da Covid-19, segundo o governo, e uma população estimada em 3,5 milhões de habitantes.>
Entre os autores das obras distribuídas, há clássicos como Hermann Hesse, Aldous Huxley, Alberto Camus, Júlio Verne e George Orwell. A literatura uruguaia também foi contemplada com escritores canônicos, como Horácio Quiroga e Juan José Morosoli, e contemporâneos como Fabian Severo. Livros infantis e juvenis também foram entregues.>
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"A ideia é que a cesta básica, mais do que algo para superar a emergência, seja um carinho para o coração das pessoas", disse à reportagem Juan Canessa, secretário-geral da prefeitura e idealizador da iniciativa.>
"Não se trata apenas de minimizar a crise em termos econômicos, mas de fortalecer o espírito. A literatura e a arte colaboram com isso. A distribuição permite que, em alguns casos, obras cheguem a pessoas que habitualmente não compram livros", explica Canessa.>
Administrada pelo coalizão de esquerda Frente Ampla, Montevidéu já não distribuía cestas básicas aos moradores carentes, que contavam com programas federais de distribuição de renda. O secretário explica, porém, que a pandemia exigiu uma reação municipal.>
Em uma tarde ensolarada, uma dupla usando máscara e luvas chegou ao endereço da cantora Agness Zacura, 40. Brasileira e mulher trans, ela recebeu uma das "canastas", como se chamam as cestas básicas no Uruguai.>
"Nos cumprimentamos com o cotovelo, sem poder dar um abraço, sem ver os sorrisos porque estavam de máscaras, mas a gente via nos olhos, aqueles sorrisinhos de olhos", relembra.>
Zacura fez um "namastê" aos servidores públicos e iniciou a retirar os itens para higienizá-los. "Quando chegou no fundo da caixa, para minha surpresa, tinha uma edição em espanhol do 'Pequeno Príncipe', um livro que eu amo muito, que já li muitas vezes. Juro a que pensei que era um equívoco, de tão surpresa que estava", conta.>
Ela ficou ainda mais surpresa por ter recebido "El Principito" (do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry). "O livro fala sobre as coisas que realmente importam, trabalha o tema de chegar ao essencial. É uma perspectiva que parece infantil, mas é profunda, ainda me emociono com ele", conta.>
A entrega para as pessoas transgêneros é parte do entendimento da prefeitura de que esse público fica ainda mais vulnerável com o isolamento social. "Ter um enfoque em direitos humanos é entender que as pessoas não tem apenas que alimentar o corpo, mas sua cultura, seu saber", diz Andrés Scagliola, coordenador da Secretaria de Diversidade.>
Para Scagliola, "não há pão sem canto", uma frase da diretora de teatro Nelly Goitiño (1927-2005).>
"Ler ajuda passar mais rápido essa época de pandemia que vivendo. Foi uma surpresa porque veio embaixo e todos alimentos. Recebi 'O Estrangeiro', de [Albert] Camus", diz a mulher trans Sofia Saunier, 45, diretora audiovisual. Multiartista, ela mantém um canal no YouTube e já teve trabalhos apresentados em mostras e exposições.>
Saunier diz que a quarentena afeta especialmente as mulheres trans que têm na prostituição a única fonte de renda. "Elas não podem sair trabalhar, os clientes também não vão", opina.>
Trabalhando em um carrinho que vende os "panchos" e "chorizos" típicos do Uruguai, a mulher trans Fiorella Clarissa Moretti, 55, também recebeu a cesta com um livro. Apesar de ser um título juvenil, alegrou-se.>
Ela está preocupada com o pagamento do aluguel quando parar de receber o seguro que compensa a falta de trabalho em razão da pandemia.>
Moretti tem se dedicado a ajudar em uma cozinha comunitária. "Assim me sinto útil", conta. "Quero voltar a respirar tranquila.">
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