Publicado em 19 de agosto de 2024 às 14:35
Antes da eleição venezuelana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse ter ficado assustado com declarações de seu antigo aliado, o presidente Nicolás Maduro, sobre um eventual banho de sangue no país caso não vencesse a disputa.>
A resposta veio em seguida. Do alto de um palanque às vésperas do pleito, Maduro mandou um recado ríspido para Lula: "A quem se assustou, que tome chá de camomila". >
Três semanas depois, outro antigo aliado na região, o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, expulsou o embaixador brasileiro no país, em um movimento considerado drástico no mundo diplomático após meses em que o governo brasileiro manteve "congeladas" as relações com o país da América Central.>
A proximidade dos dois eventos chamou atenção para um movimento identificado por especialistas em relações internacionais e diplomatas brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil em caráter reservado.>
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De forma cautelosa, Lula estaria se distanciando de alguns antigos parceiros na América Latina. >
Além de Maduro e Ortega, também faria parte desse grupo o ex-presidente da Bolívia, Evo Morales, com quem Lula sempre manteve proximidade. >
Mas o que estaria levando Lula a adotar essa estratégia em seu terceiro mandato?>
Analistas e diplomatas ouvidos pela reportagem avaliam que isso seria resultado de uma combinação de dois fatores principais. >
De um lado, a dinâmica política brasileira teria obrigado o governo e o presidente a recalibrarem a proximidade com estes três países e seus líderes.>
Venezuela e Nicarágua, por exemplo, vivem crises políticas prolongadas, e seus presidentes são acusados de agir como ditadores, não respeitar direitos humanos e perseguir opositores.>
De outro lado, a polarização política no Brasil teria aumentado os custos políticos para que Lula mantenha um discurso público de alinhamento em relação ao trio formado por líderes de esquerda e contra os quais pairam, em maior ou menor grau, alegações de desrespeito a princípios democráticos.>
Lula assumiu seu terceiro mandato com uma meta clara e pública em relação à Venezuela: restabelecer a normalidade das relações entre os dois países e ajudar o país caribenho a retomar o diálogo com o resto do mundo em meio a severas críticas de organismo internacionais e da oposição venezuelana sobre o caráter autoritário do regime de Maduro.>
O petista mandou reabrir a embaixada brasileira em Caracas, desativada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), nomeou uma nova embaixadora e recebeu Maduro em Brasília com honras de chefe de Estado durante uma cúpula de líderes da América do Sul, em maio do ano passado.>
Na ocasião, foi criticado por afirmar que as alegações de que o regime de Maduro é autoritário eram, na verdade, parte de uma "narrativa" que deveria ser combatida pelo líder venezuelano.>
"Se eu quiser vencer uma batalha, eu preciso construir uma narrativa para destruir o meu potencial inimigo. Você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela, de antidemocracia e do autoritarismo", disse Lula a jornalistas. >
Apesar do tom amistoso entre os dois em público, nos bastidores o clima no governo brasileiro era de expectativa em relação àquele que era visto como o grande teste de Maduro: as eleições presidenciais neste ano.>
Foi assim que, aos poucos, Lula e Maduro começaram a se distanciar, ao menos sob os holofotes.>
Em dezembro do ano passado, o governo brasileiro enviou tropas à fronteira com a Venezuela depois que o presidente venezuelano realizou um plebiscito sobre a incorporação da região de Essequibo, hoje controlada pela Guiana, ao território venezuelano.>
O movimento foi visto como uma espécie de alerta ante uma possível escalada de tensões então promovida por Maduro.>
À época, um diplomata ouvido pela BBC News Brasil afirmou que o governo brasileiro via o assunto como um movimento eleitoreiro, voltado a aglutinar apoio às vésperas da disputa presidencial.>
Na ocasião, Lula enviou seu assessor para assuntos internacionais, Celso Amorim, à Venezuela para mediar a crise.>
Apesar de contrariado com a possibilidade de uma disputa territorial na região, o governo brasileiro não condenou diretamente a postura venezuelana.>
A conduta brasileira, no entanto, começou a mudar mais visivelmente em março passado, depois que as autoridades eleitorais da Venezuela impediram a principal líder da oposição no país, Maria Corina Machado, e sua substituta, Corina Yoris, de disputarem a eleição.>
Lula classificou o impedimento como "grave", e o Itamaraty emitiu uma nota afirmando que o país acompanhava o processo eleitoral com preocupação.>
A nota e a declaração de Lula foram encaradas como um sinal público de uma mudança na forma como o governo petista vinha lidando com Maduro.>
O governo venezuelano rebateu afirmando que a nota brasileira parecia ter sido escrita pelo "Departamento de Estado dos Estados Unidos".>
Às vésperas da eleição, Lula voltou a se manifestar em tom crítico ao líder venezuelano por seu alerta sobre um possível "banho de sangue". >
"Já falei com o Maduro duas vezes, falei por telefone com o Maduro, e o Maduro sabe que a única chance de a Venezuela voltar à normalidade é ter um processo eleitoral que seja respeitado por todo mundo", disse Lula.>
Foi quando Maduro aconselhou o chá de camomila. Mesmo após Maduro levantar dúvidas sobre o sistema eleitoral brasileiro, Lula decidiu enviar Amorim à Venezuela para acompanhar a eleição de 28 de julho.>
O resultado das urnas vem sendo contestado desde então. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE), controlado pelo governo de Maduro, declarou a vitória do atual presidente. >
A oposição, por outro lado, afirma que a vitória foi de Edmundo González, que assumiu a cabeça de chapa da oposição.>
O governo dos Estados Unidos reconheceu a vitória da oposição. China e Rússia, por outro lado, reconheceram a vitória de Maduro.>
O Brasil, no entanto, preferiu aguardar e pediu, juntamente com Colômbia e México, que as autoridades da Venezuela apresentassem as atas de votação para garantir a lisura do pleito. Até agora, no entanto, nada foi apresentado.>
Para Carol Pedroso, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a mudança na postura de Lula em relação a Maduro pode ser explicada, em parte, pela polarização política interna no Brasil.>
Segundo ela, à medida que a direita se organizou no Brasil e passou a focar na proximidade de Lula com líderes como Hugo Chávez ou Nicolás Maduro, o custo para manter as relações como eram ficou mais caro.>
“A polarização política no Brasil é um dos elementos que complicam qualquer posicionamento em relação à Venezuela”, explica Pedroso.>
"Nos dois primeiros mandatos de Lula, as alianças internacionais dele não eram alvo de críticas tão pesadas. Agora, o tema é instrumentalizado pela direita brasileira.">
A pesquisadora Stephanie Braun, doutoranda em Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), concorda que "o aumento na polarização política no âmbito doméstico brasileiro, aliada a um incremento na voz da opinião pública sobre temáticas internacionais, acaba pressionando o governo e faz com que as atitudes sejam muito bem pensadas e elaboradas antes de serem colocadas em prática".>
"A polarização torna maiores os custos de manter alianças em alguns tabuleiros regionais", diz Braun.>
Pedroso afirma que as declarações amistosas de Lula em relação a Maduro no início do terceiro mandato deram a impressão de que o petista não teria se dado conta, àquela altura, das reações negativas que isso causaria agora em contraste com o que aconteceu em seus dois primeiros governos, quando a polarização política seria a seu ver menos intensa.>
"Parece que Lula não dava, no início do seu mandato, tanto valor a esse fato (a polarização) e, muitas vezes, falava de improviso e isso gerava muito ruído", afirma Pedroso. >
"Algumas declarações de Lula sobre Venezuela impactaram em sua popularidade. Agora, ele parece estar mais atento a isso.">
Um exemplo de como a polarização em torno da Venezuela pode ter consequências práticas aconteceu na semana passada.>
A Comissão Relações Exteriores do Senado aprovou o convite para que o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, e Celso Amorim sejam ouvidos sobre a posição do Brasil em relação ao regime de Maduro.>
A comissão tem maioria governista, mas também é composta por alguns dos principais opositores do governo Lula, como a ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina (PP-MS) e o ex-vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS).>
Apesar do caráter público das falas de Lula e Maduro, a tensão nas relações entre os dois países não parece ter chegado ao nível do que aconteceu nas últimas semanas entre o Brasil e a Nicarágua.>
No início de agosto, a governo de Daniel Ortega expulsou o embaixador brasileiro no país, Breno Dias da Costa.>
Um diplomata brasileiro diz à BBC News Brasil em caráter reservado que o motivo oficial da expulsão teria sido o fato de Costa não ter participado da festa de celebração dos 45 anos da Revolução Sandinista.>
Este diplomata, no entanto, afirma que o não comparecimento de Costa foi determinado pelo Itamaraty e faz parte da política de distanciamento que o governo brasileiro já vinha adotando em relação à Nicarágua desde 2023.>
A ordem, segundo ele, era manter as relações em níveis mínimos, evitando situações que possam demonstrar o apoio do Brasil ao governo da Nicarágua. Dessa forma, o embaixador era orientado a não participar de eventos públicos de caráter político.>
Um dos motivos para essa posição foi o recrudescimento do regime contra a oposição e membros da Igreja Católica que se posicionam de forma crítica ao governo de Ortega.>
Em junho de 2023, ao se encontrar com o papa Francisco, Lula disse que conversaria com Ortega para interceder pelo bispo de Matagalpa, Rolando José Alvarez, preso pelo governo da Nicarágua.>
"Vou tentar ajudar, se puder ajudar. Nem todo mundo é grande para pedir desculpas; a palavra é simples, mas exige grandeza", disse Lula a jornalistas na ocasião.>
O bispo Álvarez foi condenado por um tribunal nicaraguense por "desestabilizar o país" e se encontra em prisão domiciliar. Ortega, por sua vez, chamou a Igreja Católica de "ditadura perfeita".>
O bispo foi solto em julho de 2023, após a fala de Lula, mas voltou a ser preso dois dias depois.>
Ortega também é criticado internacionalmente por se manter no poder desde 2007 por meio de eleições consecutivas, algumas delas contestadas pela oposição, governos estrangeiros, como o dos Estados Unidos, e por entidades internacionais como a União Europeia.>
Uma das principais razões para as contestações são as alegações de que o regime de Ortega estaria perseguindo seus principais opositores, reduzindo as chances de uma alternância de poder.>
O líder nicaraguense, no entanto, se defende e afirma ser alvo de perseguição política de países como os Estados Unidos.>
A resposta brasileira à expulsão do seu embaixador foi na mesma moeda. Em 8 de agosto, o governo Lula anunciou a expulsão da embaixadora da Nicarágua no país. Apesar da expulsão, o Itamaraty informou que o Brasil não rompeu relações diplomáticas com o país.>
Esse distanciamento contrasta com a proximidade que Lula e Ortega cultivaram entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, quando eram vistos como dois dos principais líderes de esquerda da América Latina.>
Enquanto Lula liderou greves durante os últimos anos da ditadura militar no Brasil e participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, Ortega foi um dos principais comandantes da guerrilha que derrubou a ditadura da família Somoza na Nicarágua antes de ser eleito presidente.>
No poder, Lula foi o primeiro presidente brasileiro a visitar a Nicarágua, em 2007, quando Ortega já estava na Presidência. >
Em 2010, foi a vez de Ortega ser recebido por Lula, em Brasília. Na ocasião, Lula chamou o presidente nicaraguense de "companheiro" e "amigo". >
Para Pedroso, a situação política na Nicarágua tornou qualquer tipo de apoio público a Ortega insustentável.>
“O regime de Daniel Ortega já não é mais revolucionário há muito tempo”, afirma Pedroso.>
“Hoje, ele persegue os mesmos que fizeram a revolução com ele nos anos 1980. Essa mudança é tão evidente que até parte da esquerda brasileira não quer mais ter vínculo com o que acontece na Nicarágua.”>
Para a pesquisadora Stephanie Braun, o Brasil buscava atuar como um mediador entre Ortega e lideranças religiosas a pedido do Vaticano.>
Na sua avaliação, o prejuízo da troca de expulsões de diplomatas deverá ser maior para a Nicarágua.>
"Nesse caso, prejudicar as relações bilaterais é mais impactante para a Nicarágua do que para o Brasil, dado que o país possui menor presença e impacto econômico no sistema internacional e tal ato reforça seu isolamento internacional.">
Lula e o ex-presidente da Bolívia Evo Morales se chamam de amigos e participaram de diversas iniciativas em conjunto durante a primeira década dos anos 2000, quando os dois presidiam seus respectivos países.>
Morales chegou, inclusive, a ir à cerimônia de posse de Lula, em 2023, junto com o atual presidente e, agora ex-aliado político, Luis Arce.>
É justamente a rusga entre Morales e Arce que vem dando mostras de um certo distanciamento entre Lula e o ex-presidente.>
Arce foi ministro da economia de Morales e contou com o apoio do ex-presidente para sucedê-lo, em 2020.>
Em 2019, Morales renunciou ao seu quarto mandato após semanas de protestos contra sua reeleição.>
Mas voltou a pleitear um novo mandato apesar de a Justiça boliviana já ter se manifestado pela impossibilidade de mais de dois mandatos presidenciais no país.>
Os planos de Morales esbarram no desejo de Arce de tentar a reeleição.>
Um dos ápices do desentendimento entre os dois aconteceu em junho deste ano quando militares tentaram invadir a sede do governo boliviano no que Arce classificou como uma tentativa de golpe de Estado.>
Morales, por sua vez, chamou o movimento de "autogolpe" supostamente orquestrado por Arce para melhorar sua popularidade.>
O ex-presidente não apresentou nenhuma evidência para corroborar sua acusação.>
A postura de Morales em relação ao evento contrasta com a demonstração de apoio a Arce dada por Lula após a tentativa de invasão pelos militares.>
Logo depois do evento, tanto Lula quanto o Itamaraty se manifestaram em apoio à democracia no país.>
Dias depois, em julho deste ano, Lula visitou a Bolívia, onde se encontrou com Arce e reiterou seu apoio ao governo boliviano, ignorando a posição de Morales sobre o assunto.>
"Não podemos tolerar devaneios autoritários e golpismos", disse Lula durante declaração à imprensa em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. >
"Temos a enorme responsabilidade de defender a democracia contra as tentativas de retrocesso. Em todo o mundo, a desunião das forças democráticas só tem servido à extrema direita.">
Lula voltou da Bolívia sem se encontrar com Morales, embora não tenha descartado conversar com o líder boliviano no futuro.>
Para Braun, a posição de Lula sobre Morales e Arce é delicada: “O Brasil tem buscado atuar como mediador nas disputas internas entre Evo e Arce”.>
Essa postura, segundo ela, visa manter boas relações com ambos os lados, independentemente do desfecho político das próximas eleições na Bolívia em 2025.>
Braun avalia que, apesar do distanciamento entre Lula e esses três antigos aliados, dois deles ainda no poder, o papel de liderança regional do Brasil na América Latina não estaria em xeque.>
"O Brasil ainda se mantém como o principal líder regional na atualidade", diz a pesquisadora. >
"Dependendo do desfecho de tais casos, a atuação do Brasil como mediador em tais imbróglios regionais fortalecerá ainda mais o papel de liderança regional brasileira.">
O diplomata brasileiro ouvido pela BBC News Brasil em caráter reservado tem uma interpretação semelhante. >
Ele faz referência à carta assinada por 30 ex-presidentes latino-americanos em que eles pedem que Lula "reafirme" seu compromisso com a democracia na Venezuela.>
Segundo ele, o fato de a carta ter sido enviada a Lula mostraria que o Brasil é visto como uma liderança regional capaz de mediar a crise na Venezuela.>
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