Publicado em 20 de novembro de 2024 às 06:44
"Quando acordei, havia muito sangue (...) escutava meus irmãozinhos chorando.">
É assim que começa o forte depoimento de Lesly Mucutuy, a mais velha dos quatro irmãos menores de idade resgatados em junho de 2023 depois de passar 40 dias perdidos na Amazônia colombiana, segundo um novo documentário da Netflix.>
As Crianças Perdidas faz uma reconstituição da operação de busca e resgate realizada por voluntários indígenas e forças militares depois que o avião em que os irmãos viajavam com a mãe e outros dois adultos caiu no meio da selva amazônica.>
Apenas Lesly, Soleiny, Tien e Cristin — na época com 14, 9, 4 e 1 ano de idade, respectivamente — sobreviveram ao acidente.>
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O Instituto Colombiano de Bem-Estar Familiar (ICBF), a entidade responsável pelo cuidado dos menores, informou no aniversário do resgate que os irmãos estavam aproveitando "a vida que meninos e meninas deveriam ter nessa idade", uma vez recuperados e tendo recebido atendimento médico e psicológico.>
A nova produção da Netflix, em colaboração com a Caracol Televisión e dirigida pelo cineasta britânico Orlando von Einsiedel, compila uma série de depoimentos, como o de voluntários que participaram do resgate, de uma professora das crianças e da tia delas, além do que Lesly prestou às autoridades.>
Lesly retrata a tenacidade com que, como irmã mais velha, viveu o trauma de passar 40 dias lutando para sobreviver. >
É também uma das poucas declarações conhecidas dos menores sobre a experiência.>
Um dos fragmentos mais fortes é quando Lesly admite, segundo a reconstituição do depoimento que prestou às autoridades, que houve um momento em que decidiu abandonar os irmãos.>
"Fui embora, mas depois de 20 minutos me arrependi, e sabia que tinha que voltar. Sabia que tinha que protegê-los. Cristin e Tien quase morreram", contou Lesly.>
A mais velha dos irmãos assumiu a responsabilidade de cuidar deles — e de guiá-los pelos perigos da selva.>
Localizada entre Caquetá e Guaviare, a selva por onde as crianças perambulavam é hostil, densa e habitada por criaturas vorazes como onças e cobras.>
Neste ambiente ameaçador, Lesly — que estava com um ferimento na perna e "arrastava-se de joelhos" — forneceu comida e proteção aos irmãos.>
"Minha mãe me ensinou muito sobre as frutas que eu podia comer na selva, como a milpesos. Fiz uma vara de pescar. Pegamos alguns peixes. Comemos cru. Tinha um gosto horrível", ela disse.>
Segundo o depoimento da adolescente, ao acordar após o acidente, sua "mãe estava fazendo sons, e depois parou de fazer", indicando que ela presenciou seu último suspiro.>
"Havia muito sangue", ela contou.>
Foi então que ela levou os irmãos para buscar comida, se distanciando do avião.>
"O que mais me preocupava era que a bebê Cristin ainda estava viva.">
Lesly admitiu que não conseguia dormir, mas tentava fazer seus irmãos dormirem à noite.>
A menor descreve momentos em que escutava o chamado das equipes de resgate sem conseguir localizá-las. >
"Tentamos seguir a voz que nos chamava, mas ela desaparecia.">
As crianças foram encontradas com sinais de desnutrição.>
Tien e Cristin, os mais novos, com apenas quatro e um ano de idade, respectivamente, passaram por momentos delicados.>
"Tien estava tão fraco que não conseguia ficar de pé", disse Lesly.>
A mais velha dos irmãos contou que "quando viu o homem", referindo-se a um dos socorristas, "desabou".>
E, de alguma forma, também ficou aliviada. >
“Eu não precisava mais manter meus irmãozinhos vivos. Estávamos a salvo", resumiu.>
Além de ser uma história de resgate, o documentário de Von Einsiedel é também uma narrativa de união, colaboração e superação de diferenças em nome de um grande desafio.>
O filme mostra a desconfiança inicial que os voluntários indígenas e os militares mantiveram durante a busca, chamada na Colômbia de Operação Esperança.>
"Fui atraído por esta narrativa em particular porque estava claro que dentro dela havia muitos lampejos da incrível resiliência e força humana, não apenas na luta das crianças para sobreviverem sozinhas na selva, mas também na forma como os socorristas indígenas e o Exército conseguiram superar suas diferenças e medos para se unirem em uma missão perigosa e épica para resgatar as crianças", disse o diretor em comunicado enviado pela Netflix à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.>
A mídia colombiana continua usando os termos "milagre" e "heroísmo" para se referir à sobrevivência das crianças durante 40 dias na selva.>
Mas o fato é que este incidente também evidenciou séculos de herança e sabedoria indígena na Colômbia que contribuíram para um final feliz.>
Pouco depois de as crianças serem encontradas, a BBC News Mundo entrevistou Alex Rufino, um indígena ticuna especialista em cuidados da selva.>
Na conversa, Rufino disse que a linguagem épica usada pela mídia e pelas instituições na Colômbia revelava um desconhecimento do mundo indígena.>
Mais do que perdidas, ele disse, "as crianças estavam em seu ambiente, sob os cuidados da selva e da sabedoria de anos de povos indígenas em contato com a natureza".>
O novo documentário da Netflix explora esta noção em um país com um histórico de séculos de exclusão indígena e falta de compreensão sobre a sabedoria e visão de mundo dos povos originários.>
A história das crianças manteve a Colômbia e o resto do mundo em suspense durante semanas.>
Quase um ano e meio depois do resgate, diversas produções literárias e documentais fizeram a reconstituição deste acontecimento que continua a gerar interesse global.>
A plataforma Prime Video, da Amazon, lançou o documentário Operação Esperança: as crianças perdidas na Amazônia, em que atores e familiares recriam os acontecimentos.>
Antes disso, a Escola Superior de Guerra General Rafael Reyes Prieto publicou um livro, também chamado Operação Esperança, narrado por comandantes das Forças Militares “que se uniram numa luta desesperada contra o tempo e a natureza mais selvagem para encontrar as crianças com vida".>
O jornalista investigativo colombiano Daniel Coronell também lançou um livro intitulado Los niños del Amazonas: 40 días perdidos en la selva ("As crianças da Amazônia: 40 dias perdidas na selva", em tradução livre), no qual, por meio de uma série de entrevistas, explica como foi realizado o resgate que muitos consideravam impossível.>
Na ocasião do aniversário do resgate, a BBC News Mundo solicitou ao ICBF entrevistas com os menores e seus representantes legais, mas não foi possível realizá-las.>
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