Publicado em 26 de setembro de 2024 às 18:56
Quando deixou o Oeste do Amazonas rumo à Terra Indígena Capoto-Jarina, em Mato Grosso, a psicóloga Jaqueline Aparício, indígena da etnia Kokama, sabia que encontraria um cenário difícil ao desembarcar. Mas nada a havia preparado para aquilo. A aldeia Piaraçu, onde havia sido enviada para trabalhar, estava engolida pela fumaça.>
"O nosso território é extensão do nosso corpo. Faz parte da nossa espiritualidade. Ver a destruição dos animais ou de uma árvore é como ver a nossa própria destruição", disse à BBC News Brasil.>
O relato de Jaqueline Aparício ilustra um dos aspectos menos visíveis da crise ambiental causada pelos incêndios florestais no Brasil: a destruição deixada pelo fogo nas terras indígenas brasileiras neste ano.>
Mas um levantamento feito com exclusividade pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) para a BBC News Brasil mostra o tamanho do estrago deixado pelas queimadas nesses territórios.>
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Segundo o levantamento, entre janeiro e agosto deste ano, o fogo destruiu 3,08 milhões de hectares em áreas destinadas aos povos indígenas do país. Isso equivale a 27% dos mais de 11 milhões de hectares de área queimada em todo o Brasil.>
Em relação ao ano passado, o crescimento no tamanho da área queimada em terras indígenas foi de 76%.>
Nas comunidades, os efeitos de tanta queimada são sentidos por toda a população, mas especialmente por jovens e idosos que sofrem com problemas respiratórios. Mas o impacto do fogo não é sentido apenas no ar.>
O avanço das queimadas vem dificultando o acesso a territórios, destrói casas e roças e coloca em risco a segurança alimentar de comunidades inteiras.>
Lideranças indígenas e ambientalistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que os dois principais fatores responsáveis por esse aumento na área queimada em terras indígenas são: os efeitos das mudanças climáticas e o avanço do agronegócio.>
Procurado, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) enviou nota dizendo contratou mais de três mil brigadistas e que metade deles é indígena. A nota também informou que o governo liberou R$ 514 milhões a mais no orçamento para o combate a incêndios em todo o Brasil.>
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) foram procurados, mas não responderam aos questionamentos.>
O aumento das áreas destruídas pelo fogo em terras indígenas ocorre durante a pior temporada de queimadas no Brasil em 14 anos. De acordo com dados do Inpe, até 23 de setembro, o país havia registrado 202 mil queimadas, um aumento de 98% em comparação com o ano anterior.>
Enquanto o Inpe contabiliza o número de queimadas, o IPAM avaliou a área total destruída. O IPAM é uma organização não-governamental que atua no combate às mudanças climáticas e na preservação do meio ambiente. Segundo os dados, entre janeiro e agosto deste ano, o fogo consumiu 11,3 milhões de hectares no Brasil, um aumento de 117% em relação ao mesmo período do ano anterior, quando foram destruídos 5,2 milhões de hectares.>
Ambos os levantamentos utilizaram dados de satélites, mas focaram em aspectos diferentes: o Inpe no número de focos de incêndio e o IPAM na extensão das áreas afetadas. >
Esse cenário reflete a crescente destruição ambiental no Brasil, com grandes impactos em áreas protegidas e terras indígenas.>
O governo federal, responsável pelo combate aos incêndios em terras indígenas, anunciou uma série de medidas para lidar com a esta crise como o aumento no número de brigadistas e contratação de mais aeronaves para o combate às queimadas, mas, até agora, o número de focos de calor continua crescendo.>
Em meio ao aumento no número de incêndios, comunidades dentro da terras indígenas,>
A técnica em enfermagem Márcia Glauciane de Araújo Pereira dos Santos, que também trabalha na Terra Indígena Capoto-Jarina, disse que não consegue ver o céu da aldeia Piaraçu há mais de um mês por conta da fumaça causada pelas queimadas.>
"A gente vem sofrendo com isso e o cenário está complicado porque as crianças e idosos estão com mais problemas respiratórios", contou Santos à BBC News Brasil.>
A psicóloga Jaqueline Aparício descreve a rotina no posto de saúde localizado na aldeia.>
"A rotina agora é de uma grande procura, principalmente por crianças e idosos, que estão com problemas respiratórios. Os anciãos estão sufocados pela fumaça", disse.>
Santos disse que os impactos do fogo na terra indígena não se resumem apenas aos problemas respiratórios.>
Encravada em uma área de floresta amazônica razoavelmente bem preservada, aldeia Piaraçu é abastecida com energia levada por uma linha de transmissão que conecta o local à cidade mais próxima.>
O problema, segundo ela, é que desde o agravamento dos incêndios na região, o fogo derrubou árvores que romperam os cabos de transmissão de energia e deixaram a aldeia no escuro. Agora, a única eletricidade da comunidade é a que vem de grupos geradores movidos a gasolina ou óleo diesel.>
Isso também teve, segundo ela, impacto direto na saúde da comunidade.>
"Sem energia, estamos com problema para armazenar medicamentos em ambientes refrigerados. Há pacientes que fazem uso de insulina que também estão enfrentando dificuldades por conta disso", contou.>
Outro impacto das queimadas é sobre o deslocamento de pacientes. Como a aldeia é localizada em plena floresta amazônica, a forma mais fácil de remover pacientes que precisam de atendimento urgente é por avião. Mas como a fumaça encobre a região há mais de um mês, pilotos têm evitado pousar na pista que atende a comunidade.>
Ela contou à BBC News Brasil que, na semana passada, uma indígena com nove meses de gestação precisou de atendimento urgente e teve de ser removida da aldeia por terra para a cidade mais próxima. Uma viagem que de avião demoraria pouco mais de uma hora, de carro durou aproximadamente oito horas.>
Segundo ela, a indígena e a criança, que ainda não nasceu, estão bem apesar do susto.>
Para a Diretora de Ciência do IPAM, Ane Alencar, os dois principais fatores que causam o crescimento da área queimada em terras indígenas neste ano são: as mudanças climáticas e o avanço do agronegócio sobre esses territórios.>
Por um lado, as mudanças climáticas geram estiagens prolongadas e severas como a que atinge o Brasil neste momento.>
Isso faria com que regiões como o Cerrado fiquem extremamente suscetíveis ao alastramento de fogo. "Qualquer fagulha e o fogo escapa de controle e pode tomar grandes proporções", explicou.>
Alencar explica que os indígenas também utilizam o fogo como técnica ancestral de manuseio da terra, mas que, historicamente, as queimadas realizadas por eles seriam feitas de forma controlada e adaptada à realidade local. Ela levanta a tese de que, à medida que as mudanças climáticas alteram as condições do solo e da umidade, algumas dessas queimadas poderiam estar saindo de controle.>
Apesar disso, ela disse reforçar que, na sua avaliação, a grande maioria dos focos de incêndio que atingem as terras indígenas no Brasil são registrados fora desses territórios e seriam resultado da pressão do agro.>
"É importante a gente entender que nós não estamos dizendo que foram os indígenas que colocaram fogo na floresta. Esses territórios são cercados por regiões agropecuárias onde se utiliza muito o fogo", afirmou.>
"Eu diria que grande parte desse aumento na área queimada é resultado dessa pressão que vem de fora para dentro das terras indígenas", afirmou.>
A avaliação é semelhante à do coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinamam Tuxá. A Apib é uma das principais organizações não-governamentais que atuam na defesa dos povos originários no país.>
Para ele, parte significativa desse crescimento na área queimada é fruto de ações criminosas.>
"Para além das mudanças climáticas, temos a ação humana nesse processo e aumento das queimadas. Uma ação humana criminosa que ateia fogo dentro, fora e no limite das nossas terras para promover o avanço do agronegócio", afirmou.>
Tuxá disse avaliar que as ações do governo federal em relação ao avanço das queimadas nesses territórios têm sido insuficientes. Para ele, falta "efetividade" na punição dos responsáveis pelas queimadas.>
"O governo tem feito um discurso de conter o avanço do fogo. Temos visto algumas movimentações, mas a nossa análise é de que isso ainda é insuficiente porque precisamos de mais efetividade para conter tanto as mudanças climáticas quanto esses criminosos que ateiam fogo em nossas terras", disse.>
Tuxá disse é preciso que o governo implemente uma estratégia permanente para penalização das pessoas responsáveis por queimadas ilegais.>
Em meio às críticas que vem sofrendo nos últimos meses, o governo federal passou a coletar propostas de ministérios e agências como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para conter o avanço das queimadas. Parte dessas propostas, que ainda não foram formalmente apresentadas, prevê o aumento nas punições a pessoas ou empresas responsáveis por queimadas ilegais.>
Para Ane Alencar, do IPAM, teria faltado planejamento ao governo federal para lidar com uma crise do tamanho da que atingiu o Brasil neste ano.>
"Esse planejamento e a articulação com os governos estaduais deveria ter começado antes. Acho que esse foi um dos grandes equívocos do governo federal", afirmou a pesquisadora.>
Ela disse acreditar que, além disso, o governo se viu surpreendido com a dimensão da ação criminosa que se seguiu à estiagem. Segundo ela, criminosos estariam aproveitando a seca para atear fogo em áreas onde, normalmente, o fogo não era identificado.>
"Acho que teve uma expectativa de que o MMA seria capaz de lidar com esse problema com as forças que normalmente eram mobilizadas, só que a gente visto um número de focos de calor em áreas inusitadas, o que indica que pessoas estão usando esse momento para colocar fogo. Isso tem feito com que nenhum esforço seja suficiente para combater os incêndios", disse.>
A BBC News Brasil enviou questionamentos ao Ibama, ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, ao MMA e à Funai. Apenas o MMA respondeu.>
Em nota, o MMA disse que os incêndios florestais no Brasil são intensificados pela mudança climática, que teria sido responsável pela maior seca em 75 anos. Ainda segundo a pasta, o Ibama e o ICMBio mobilizaram mais de 3 mil brigadistas, sendo metade indígenas, para combater os incêndios. >
O ministério disse que a ação do governo federal é coordenada por uma sala de situação, criada em junho, que envolve diversos ministérios. >
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