Publicado em 12 de dezembro de 2025 às 12:44
Se você já foi assediada na rua tarde da noite, certamente conhece a reação de estresse que isso pode causar. Seus mecanismos de defesa podem ser ativados e deixar você se sentindo fisicamente abalada e vulnerável.>
Todas as minhas amigas já tiveram essa experiência. E todas nós, em algum momento da vida, já fomos para casa no escuro, segurando as chaves nas mãos.>
Eu mesma cheguei a ter aulas de caratê na universidade, para o caso de acontecer o pior. E, com muito treino, aprendi a derrubar um oponente no chão e atingir o ponto de pressão certo para causar dor.>
Mas, quando a atenção sexual indesejada não é uma ameaça direta, ela muitas vezes passa ignorada, o que não significa que não haverá um efeito psicológico duradouro.>
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Pesquisas recentes indicam que os próprios atos diários de sexismo podem trazer repercussões que atingem toda a vida e o próprio corpo das pessoas.>
O movimento pelos direitos das mulheres teve muito sucesso no século passado. Em muitos países, a igualdade salarial, agora, é exigida em lei e a discriminação sexual é ilegal.>
O Reino Unido já teve três mulheres primeiras-ministras e é cada vez mais comum observar mulheres na liderança no país.>
Mas permanece a preocupação de que a igualdade de gênero tenha atingido um impasse no mundo, ou até mesmo regredido. As estatísticas sobre a disparidade de gênero nos salários ainda resistem e a violência contra as mulheres e meninas continua a aumentar.>
Globalmente, os números são alarmantes. Quase uma em cada três mulheres afirma ter sido submetida a violência física, sexual ou ambas.>
E existem as formas sutis de sexismo que podem invadir o dia a dia, como o paternalismo, o menosprezo e o sexismo benevolente dos cumprimentos aparentemente positivos em termos de gênero. Na verdade, eles estão ligados à noção de que as mulheres são naturalmente mais gentis ou emocionais e os homens, mais racionais ou dominantes.>
Estas noções estão enraizadas nos estereótipos de gênero, que podem prejudicar o empoderamento feminino e "reforçar a posição subordinada das mulheres".>
Paralelamente, nos Estados Unidos, um website governamental excluiu e alterou recentemente informações sobre a saúde das mulheres, segundo um relatório da socióloga Patricia Homan e seus colegas, da Universidade Estadual da Flórida, nos EUA.>
"As informações que foram acrescentadas reforçam o essencialismo do sexo biológico, definindo o corpo das mulheres como fraco e necessitando de proteção, enquadrando ainda as pessoas trans como uma ameaça", observa o resumo do relatório, publicado na revista The Lancet.>
O conteúdo retirado do site se referia aos cuidados maternais e à saúde reprodutiva. Ele incluía um link para o site "reproductiverights.gov", agora inativo, que fornecia informações sobre o acesso a medicações, contracepção, atendimento de emergência e serviços de aborto.>
O Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos não respondeu ao pedido de comentários enviado pela BBC, até o momento da publicação desta reportagem.>
Todos estes são exemplos do chamado "sexismo estrutural", definido por Homan como a desigualdade de gênero sistemática em termos de poder e recursos, incorporada às nossas instituições sociais.>
"Na verdade, é questão das formas de desequilíbrio de poder, status e recursos entre homens e mulheres", explica ela.>
Não surpreende que possa haver efeitos significativos para a saúde das mulheres, que nem sempre são imediatamente visíveis.>
Um grande estudo analisou mais de 7,8 mil imagens cerebrais de pessoas de 29 países e concluiu que o desequilíbrio de gênero na sociedade altera fisicamente o cérebro das mulheres.>
A pesquisa demonstrou que mulheres que vivem em países com maior desigualdade de gênero apresentam menor espessura cortical em regiões do cérebro associadas ao controle emocional, resiliência e distúrbios relacionados ao estresse, como depressão e transtorno de estresse pós-traumático.>
O psiquiatra Nicolas Crossley, da Pontifícia Universidade Católica do Chile, declarou em 2024, enquanto eu pesquisava para meu livro Breadwinners, que é como se a desigualdade de experiências das mulheres "deixasse uma cicatriz no cérebro".>
O motivo que leva às mudanças cerebrais causadas pelo estresse da desigualdade se deve a um processo chamado plasticidade, que define como o cérebro se adapta às nossas experiências e aprendizado.>
Por isso, Crossley explica que, se uma habilidade, como o malabarismo, causa alterações sensíveis no cérebro, a experiência profunda e duradoura de viver em uma sociedade que desvaloriza você terá um efeito de longo prazo, pois o estresse crônico inibe a capacidade natural do cérebro de se adaptar.>
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Fundamentalmente, os pesquisadores observaram que essas diferenças cerebrais são reduzidas em países com maior igualdade de gênero e não foram encontradas no mesmo grau nos homens. Mas eles também apresentaram maiores alterações cerebrais nos países mais desiguais.>
"Ou seja, se você promover a igualdade de gênero, irá melhorar a saúde das mulheres, com redução de custos para todos", explica Crossley.>
Outras pesquisas também observaram impactos à saúde mental causados pela discriminação de gênero. Um estudo britânico concluiu que as mulheres que vivenciaram a discriminação sexual apresentaram piora da saúde mental quatro anos depois.>
O estudo envolveu quase 3 mil mulheres e 20% delas relataram terem vivenciado sexismo de diferentes formas, desde se sentindo inseguras em espaços públicos até serem insultadas ou atacadas fisicamente.>
Essas mulheres apresentaram probabilidade três vezes maior de relatar distúrbios psicológicos e menor satisfação com a própria vida.>
"A exposição repetida a experiências estressantes ao longo do tempo pode gerar desgaste no corpo e essas alterações biológicas prejudiciais podem estar relacionadas a prejuízos ao bem-estar mental", afirma a psicóloga da saúde Ruth Hackett, do King's College de Londres.>
Ela é a principal autora do estudo e confirma as observações de Crossley, afirmando que "isso só desgasta as pessoas".>
Alguns anos depois, Hackett realizou pesquisas complementares e encontrou resultados parecidos em mulheres com mais de 52 anos de idade.>
Aquelas que relataram discriminação de gênero, como assédio ou tratamento menos respeitoso, demonstraram declínio da sua saúde mental seis anos depois. Elas apresentaram maior sensação de solidão, menor satisfação e queda da qualidade de vida.>
Tomados em conjunto, estes resultados demonstram que os efeitos da discriminação de gênero são duradouros.>
Outros estudos também demonstraram que as mulheres que moram em sociedades com maior igualdade de gênero apresentam menores índices de depressão, da mesma forma que mulheres em relacionamentos mais igualitários.>
Além das consequências à saúde mental, existe também uma questão maior, que é a desigualdade de tratamento médico, em relação à saúde da mulher.>
É bem documentado na literatura científica que as preocupações com a saúde física das mulheres são consideradas com menos seriedade na medicina.>
Um estudo concluiu que, nas instalações de pronto atendimento, as mulheres têm menos probabilidade de receber analgésicos opioides que os homens. E elas também recebem menos prescrição de outros analgésicos, ainda que os sintomas de dores sejam os mesmos, segundo um estudo de 2024.>
"O nosso trabalho revela uma disparidade sexual sistemática na gestão das dores", afirmam os autores do estudo.>
"Uma paciente que recebe alta do pronto atendimento tem probabilidade significativamente menor de receber tratamento ao se queixar de dores, em comparação com um paciente homem.">
Existem muitas outras razões que tornam o sexismo estrutural tão prejudicial.>
Patricia Homan explica que ele restringe o acesso das mulheres a recursos essenciais de promoção do bem-estar, como a autonomia e a remuneração justa. E também pode aumentar sua exposição a experiências prejudiciais, como a violência doméstica, ambientes de trabalho inseguros e estresse crônico.>
E existem também desvantagens para os homens.>
O sexismo estrutural pode fazer com que eles se beneficiem dos salários mais altos e da menor quantidade de tarefas domésticas. Mas Homan explica que o sexismo estrutural pode alimentar normas de masculinidade prejudiciais, que os incentivam a correr riscos, praticar violência, abusar de substâncias e evitar buscar assistência médica.>
Nos relacionamentos pessoais, seguir as normas tradicionais masculinas também traz consequências negativas para os homens.>
Uma grande meta-análise que envolveu mais de 19 mil participantes concluiu que os homens que adotam características como a dominação sobre as mulheres e a busca de status e promiscuidade sexual são mais propensos a sofrer problemas de saúde mental.>
Os autores afirmam que "o sexismo não é apenas uma injustiça social, mas também traz consequências prejudiciais à saúde mental das pessoas que adotam esse comportamento".>
Em outras palavras, a internalização de normas de gênero rígidas pode prejudicar a saúde dos homens de forma duradoura.>
O mesmo sistema que oferece privilégios aos homens pode levá-los a sentir que precisam confirmar uma versão irreal de masculinidade. E, se essa noção não for cumprida, pode haver prejuízos para a sua saúde mental.>
Além disso, quando os homens se enfraquecem, pode haver prejuízos para as mulheres. O desejo de poder e status, muitas vezes esperado dos homens, pode aumentar diretamente o assédio sexual.>
Diversos experimentos concluíram que homens com histórico de se sentirem impotentes são mais propensos a praticar comportamentos sexualmente perturbadores, quando recebem poder temporariamente sobre outras pessoas.>
Para buscar soluções, todos nós podemos fazer mudanças sociais e pessoais.>
Os responsáveis pelos jovens podem conversar com a próxima geração desde cedo sobre o que é o comportamento adequado, para que eles tenham consciência dos estereótipos de gênero e pressupostos sexistas. Isso é especialmente necessário porque os estereótipos podem começar a ser impostos desde os três meses de idade.>
Os pais também podem questionar deliberadamente os pressupostos sexistas em casa. Até porque a "masculinidade hostil", que ocorre quando os homens demonstram hostilidade em relação às mulheres, foi relacionada ao aumento de casos de violência contra a mulher.>
Em termos de sociedade, decisões políticas podem ajudar a combater esses desequilíbrios, como o oferecimento de licença-paternidade para todos os trabalhadores, homens e mulheres.>
Esta medida foi implementada com sucesso em vários países nórdicos, onde uma política remunerada de "use ou perca" aumentou a quantidade de homens que tiram licença-paternidade.>
Isso, por sua vez, torna normal e valoriza o cuidado. E o maior apoio em casa ajuda a fortalecer a relação das mulheres com o mercado de trabalho, limitando o prejuízo financeiro.>
Quando os homens assumem maior responsabilidade em relação ao cuidado em casa, a própria ideia do que é a masculinidade pode se alterar e evoluir ao longo do tempo, passando a incluir o cuidado e o maior apoio às mulheres.>
E poderá até desenvolver um sentido diferente do que pode significar ser um homem, gerando a chamada "masculinidade cuidadosa".>
O empoderamento das mulheres beneficia toda a sociedade, explica Homan. Afinal, as mulheres no poder tendem a investir mais em assistência médica, saúde pública, educação, bem-estar e programas de assistência social, que podem melhorar a saúde da população em geral.>
"Por outro lado, o aumento do sexismo estrutural gera redução dos investimentos públicos nestes setores, prejudicando a todos, incluindo os homens", segundo ela.>
Por fim, falar abertamente sobre as consequências do sexismo pode ajudar a aumentar a consciência sobre os riscos envolvidos.>
Existem evidências de que conversar sobre a discriminação é benéfica para a saúde mental, pois pode gerar maior apoio. Mas, ao mesmo tempo, precisamos reconhecer a onipresença estrutural desta questão e que as ações individuais não são suficientes.>
Atualmente, as evidências ainda pintam um quadro grave sobre o quanto é preciso avançar para que as mulheres vivam em um mundo onde se sintam não apenas seguras, mas em que o sexismo estrutural entrincheirado não prejudique sua saúde.>
Esta mudança só será possível se mais pessoas deixarem claro o que está em jogo nesta questão.>
* Melissa Hogenboom é jornalista especializada em ciência e saúde da BBC. Ela é a autora dos livros The Motherhood Complex ("O complexo de maternidade", em tradução livre) e Breadwinners ("Provedores"), lançado em 2025.>
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Innovation.>
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