Publicado em 27 de agosto de 2023 às 09:03
O apresentador Fausto Silva, o Faustão, entrou na fila de espera por um transplante de coração após seu quadro de insuficiência cardíaca se agravar.>
Aos 73 anos, ele está internado desde o dia 5 de agosto no Hospital Albert Einstein, em São Paulo.>
Além de Faustão, mais de 65 mil brasileiros estão à espera por um transplante no país atualmente, segundo o Ministério da Saúde. Destes, cerca de 380 aguardam por um coração. >
O Brasil tem uma das maiores filas do mundo, mas também criou e mantém o maior sistema público de transplantes.>
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O país é o segundo que mais realiza esse tipo de procedimento, atrás apenas dos Estados Unidos, que é privado.>
Em 2022, foram quase 26 mil cirurgias de transplante no Brasil, entre os quais 359 de coração.>
As mais comuns foram de córnea (13,98 mil), rim (5,3 mil) e medula óssea (3,99 mil), segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO).>
O país tem ainda mais de 600 hospitais autorizados a fazer transplantes. >
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que o sistema brasileiro é bastante completo e funciona bem, servindo inclusive de modelo para outros países. >
"O sistema de transplantes brasileiros é reconhecido internacionalmente por ser inteiramente público e oferecer serviços em um país gigantesco e muito povoado", diz Alcindo Ferla, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em saúde pública.>
"Além disso, também é reconhecido pela qualidade técnica e das políticas públicas envolvidas.">
Ainda assim, precisa de mais recursos financeiros para se tornar mais eficiente e menos desigual, diz o médico Leonardo Borges de Barros e Silva, coordenador da Organização de Procura de Órgãos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP).>
"O processo de doação e transplante no Brasil é excelente, especialmente quando comparado a outras partes do Sistema Único de Saúde [SUS]. Mas, como todo o sistema, está subfinanciado e há desigualdade", diz.>
"A espera por um órgão pode variar conforme o Estado do Brasil em que o paciente está. Os índices de doação também variam muito entre as regiões do país.">
Segundo os especialistas, o principal gargalo para aumentar a eficiência está no momento da doação: muitas famílias ainda hesitam em permitir a doação após o falecimento e nem sempre há equipes hospitalares totalmente preparadas para lidar com o momento. >
O primeiro transplante no Brasil foi realizado em 1968, mas o sistema brasileiro como conhecemos hoje só foi criado muito depois, em 1997.>
Ele foi inspirado, entre outros, no modelo da Espanha, considerado um dos mais eficientes do mundo.>
O atual sistema é regulamentado pela Lei 9.434 de 1997. >
A norma estabelece, entre outras coisas, a existência de dois tipos de doador: o vivo e o falecido.>
No caso do doador vivo, podem ser cedidos um dos rins, parte do fígado, parte dos pulmões ou parte da medula óssea. >
Nestes casos, a legislação brasileira permite que cônjuges e parentes de até quarto grau sejam doadores. >
Para pessoas que não são parentes, a doação só é possível com autorização judicial. >
No caso de doador falecido, tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento só podem ser retirados após o diagnóstico de morte cerebral e com autorização da família.>
Um doador falecido após morte cerebral que não tenha sofrido parada cardiorrespiratória pode doar coração, bem como pulmões, fígado, pâncreas, intestino, rins, córnea, vasos, pele, ossos e tendões.>
Após a avaliação dos órgãos ou tecidos, as comissões dos hospitais cadastram dados relativos às partes do corpo em um programa informatizado que combina essas informações com os dados de possíveis receptores. >
Já os pacientes são separados de acordo com o órgão que será transplantado, tipos sanguíneos e outras especificações técnicas, como peso e altura. >
Na hora de combinar o órgão com o receptor, leva-se em conta a posição na lista única, mas também esses critérios.>
"Pacientes em estado crítico podem ser atendidos com prioridade, em razão de sua condição clínica", explica o Ministério da Saúde em nota.>
Esse sistema computadorizado é de responsabilidade do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) e gerenciado pela Central de Transplantes de cada Estado. >
Há também outras entidades envolvidas no processo de identificação e distribuição dos órgãos, tais quais as Organizações de Procura de Órgãos (OPO) e os Bancos de Órgãos e Tecidos.>
Após identificado um receptor, o órgão é enviado pela Central de Transplantes ao hospital onde está o paciente para que seja implantado pela equipe transplantadora que acompanha a situação clínica. >
Em geral, esses processos não levam mais do que algumas horas e, apesar de na maioria das vezes o transporte ser realizado por terra, em casos de mais urgência podem ser usados helicópteros ou aviões.>
Nesses casos, há colaboração da Força Aérea ou de companhias aéreas privadas que possuem convênio com o governo para transporte gratuito de equipes e órgãos em voos comerciais.>
Um coração pode demorar no máximo quatro horas para ser transplantado após a retirada do corpo do doador. Em contrapartida, um pulmão ou um fígado podem esperar até seis horas. >
Como chefe da OPO do Hospital das Clínicas, Leonardo Borges de Barros e Silva explica que há muitas etapas e pequenos entraves no processo que muitas vezes não são de conhecimento público. >
"A pessoa que se inscreveu há mais tempo para transplante vai estar no começo da fila. Mas há outros critérios que incidem no processo, como compatibilidade – no caso do rim se leva em consideração questões imunológicas genéticas, por exemplo – tamanho, peso e altura do doador e estado de saúde do receptor", diz. >
"Se o primeiro da fila está com covid, por exemplo, ele não poderá receber o órgão, e o sistema vai buscar o próximo mais compatível.">
Os órgãos geralmente são destinados a receptores em uma mesma região, já que há pouco tempo para transporte. Mas Barros e Silva explica que, por vezes, há transporte entre Estados.>
"Existem casos de priorização nacional, determinados pelo sistema", diz. >
"Mas também há casos de Estados que não realizam alguns procedimentos, como transplante de coração, e a equipe de outra região precisa ir até lá retirar o órgão e transportá-lo".>
Para Alcindo Ferla, um dos maiores trunfos do sistema brasileiro é sua transparência e justiça.>
"Nenhum médico ou autoridade pode decidir nada sozinho no processo, seja no momento da doação ou do transplante", diz. >
"E fatores como condições econômicas tampouco importam, todos têm que esperar sua vez seguindo os mesmos critérios".>
Qualquer cidadão também pode acompanhar a lista única de espera e ter acesso aos critéios de prioridade pelo site do Sistema Nacional de Transplantes ou das secretarias estaduais de saúde.>
O sistema de distribuição e organização da lista de espera é totalmente público no Brasil, e mais de 90% das cirurgias são feitas pelo SUS. Os pacientes recebem toda a assistência, incluindo exames preparatórios, cirurgia, acompanhamento e medicamentos pós-transplante>
A maioria dos planos privados de saúde não cobre este tipo de tratamento, cujo custo pode variar de R$ 4 mil a R$ 70 mil.>
No caso do SUS, o financiamento vêm do Ministério da Saúde e é gerenciado pela Coordenação-Geral do Sistema Nacional de Transplantes (CGSNT), um órgão da pasta. >
Para este ano, o investimento previsto no sistema é de R$ 1,33 bilhão, ante R$ 1,06 bilhão gasto no ano passado – um aumento de 31%.>
Mas Eraldo Moura, coordenador do Sistema Estadual de Transplantes da Bahia, explica que esse não é todo o financiamento disponível. >
"Na Bahia, por exemplo, temos um cofinanciamento estadual para um programa de incentivo ao transplante e à doação de orgãos, além dos aportes do Ministério da Saúde", diz. >
Além disso, o processo da cirurgia e o acompanhamento após o procedimento também contam com a participação e o financiamento dos Estados. A responsabilidade pela formação dos profissionais especializados também é dividida. >
Mas apesar de ser referência em termos de atendimento gratuito e justo, especialistas fazem críticas à eficiência do processo de busca de doadores e concretização da doação.>
O Brasil tem atualmente 13,8 doadores efetivos para cada 1 milhão de habitantes. >
Para efeito de comparação, Estados Unidos e Espanha, os dois países com melhores índices, tem respectivamente 41,6 e 40,8 doadores efetivos para cada 1 milhão, segundo os dados mais recentes do Registro Internacional de Doação e Transplante de Órgãos. >
Em contrapartida, o Brasil está na frente de outros países desenvolvidos, como Alemanha, Israel e Coreia do Sul.>
"Precisamos melhorar em termos de financiamento, não só para o processo em si, mas também para a formação de profissionais mais especializados e para a produção de conhecimento e pesquisa científica sobre o tema", diz Alcindo Ferla, da UFRGS.>
Segundo o pesquisador, a população brasileira ainda não é tão envolvida com a doação de órgãos como a de outros países, o que influencia muito no tamanho da fila de espera no país.>
Além disso, falta formação de profissionais totalmente preparados para lidar com as famílias de possíveis doadores em todo o território brasileiro, diz.>
"A mobilização da sociedade em torno desse tema é um fator importante. Criar uma cultura de doação entre a população e colocar o tema na agenda pública de debate.">
"A expectativa de algum familiar receber um órgão se houver necessidade em algum momento precisa ter como contrapartida a disponibilidade de fazer a doação e de se envolver mais", diz.>
Analistas consultados pela BBC News Brasil afirmam ainda que, apesar de o sistema brasileiro ser totalmente público, a desigualdade regional ainda é uma realidade. >
"O sistema nacional de transplantes é um reflexo da realidade do país. Os Estados com menor IDH ou PIB per capita são os que têm mais dificuldade com doação e transplante também", diz Barros e Silva, do HCFMUSP.>
Os Estados com maior número de transplantes por habitante são Paraná, São Paulo e Santa Catarina, segundo dados da ABTO. Já os com o menor número são Roraima, Alagoas e Maranhão. >
Enquanto no Paraná foram realizados 40,4 transplantes por milhão de habitantes em 2022, em Rondônia, a média foi de 2,2 procedimentos por milhão.>
O maior sistema de transplantes do mundo é atualmente o dos Estados Unidos. >
O país realizou mais de 42 mil procedimentos em 2022, segundo o governo americano.>
O sistema, porém, não é público. Em geral, o receptor do órgão ou seu convênio médico devem pagar pelo procedimento, enquanto a família do doador não é cobrada.>
Apesar de os Estados Unidos serem o país que mais realiza transplantes todos os anos, o modelo americano é bastante criticado internamente.>
Atualmente, 104 mil pessoas estão em listas de espera, e 17 pessoas morrem todos os dias à espera de um transplante, segundo a Rede Unida para o Compartilhamento de Órgãos, uma organização ligada ao Departamento de Saúde e que controla o sistema.>
Críticos afirmam que a gestão da instituição não é eficaz e que pacientes pobres e de minorias raciais são menos beneficiados pelo sistema.>
Já o sistema espanhol é considerado por especialistas como o mais eficiente. >
Os procedimentos são realizados pelo sistema público de saúde de forma gratuita. >
Mas diferente do Brasil, na Espanha todos os cidadãos pagam taxas periódicas de seguridade social que garantem seu acesso à saúde pública. >
Outro ponto que diferencia o sistema é a forma como as doações são conduzidas. >
Segundo a lei local, todo cidadão é um potencial doador: as famílias podem impedir a doação após o falecimento, mas se pressupõe que qualquer espanhol que tiver morte encefálica e estiver em condições de saúde terá seus órgãos doados. >
No entanto, o governo diz que não é esse modelo que garante o sucesso do sistema, mas sim as medidas de conscientização da população e o desenvolvimento das técnicas usadas.>
"A Espanha é a grande referência mundial para formação de equipes específicas para entrevistas com familiares de possíveis doadores", diz Eraldo Moura. >
"Mas independentemente de qualquer coisa, o cidadão espanhol é pró-doação de órgão. Esse tema já faz parte da cultura local", completa Barros e Silva.>
Segundo os especialistas, a implementação do modelo espanhol que considera todo cidadão como doador não necessariamente funcionaria no Brasil. >
O país, inclusive, testou por um curto período de tempo o chamado consentimento presumido, segundo o qual os órgãos de uma pessoa falecida só não seriam doados caso houvesse uma manifestação clara da família.>
A regra foi determinada pela própria Lei 9.434 de 1997, mas alterada pelo governo federal por meio de uma Medida Provisória em outubro de 1998.>
"De nada adianta uma lei assim se não há diálogo com a população sobre os verdadeiros propósitos e sobre a importância da doação", diz Alcindo Ferla.>
"Muitas pessoas acreditam que o corpo do ente falecido vai ser profanado ou têm crenças religiosas que as impedem de autorizar a doação. Essa falta de conhecimento sobre o tema e a falta de equipes especializadas para conversar com as famílias são os principais gargalos do sistema atualmente.">
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