Publicado em 3 de março de 2025 às 00:44
O filme Ainda Estou Aqui, do diretor Walter Salles, venceu o Oscar de Melhor Filme Internacional de 2025, decidiu a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas neste domingo (2/3), que deu a estatueta à produção brasileira (leia aqui todos os vencedores).>
"Esse filme vai para uma mulher que, após uma perda enorme por um regime autoritário, decidiu não se render: Eunice Paiva", discursou Salles, que dedicou ao prêmio às duas atrizes que encarnam a viúva na produção: Fernanda Torres e a mãe dela, Fernanda Montenegro.>
É a primeira vez que uma obra do Brasil ganha o prêmio, dado aos longa-metragens produzido fora dos Estados Unidos e com diálogos predominantemente em uma língua diferente do inglês.>
Em 1960, o filme Orfeu Negro venceu na categoria de Melhor Filme Internacional (então "filme estrangeiro"). Mas, apesar de ter sido filmado no Brasil, falado em português e com atores brasileiros, a produção garantiu um Oscar à França, país do diretor Marcel Camus.>
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O país também tinha chegado perto da estatueta nessa categoria com O Pagador de Promessas (1963), O quatrilho (1996), O que é isso companheiro? (1998) eCentral do Brasil (1999), todos indicados.>
Portanto, a conquista de Ainda Estou Aqui é histórica.>
O longa também foi a primeira produção do país a ser indicada ao Oscar de melhor filme - que inclui as produções americanas.>
Além disso, Fernanda Torres concorreu como melhor atriz, por seu papel no filme, mas perdeu a estatueta para Mikey Madison, que levou por Anora.>
O prêmio coroa uma trajetória internacional bem sucedida do longa de Walter Salles, que recebeu elogios na crítica especializada internacional e, só nos EUA, chegou a ser exibido em mais de 700 salas.>
Antes do Oscar, o longa também recebeu uma série de prêmios: Globo de Ouro, Goya, Festival de Veneza e Festival Internacional de Roterdã.>
Para o diretor Walter Salles, a produção mobilizou tanta gente por ser uma história sobre resistência — em um contexto de fragilidade da democracia em todo o mundo.>
Ainda Estou Aqui é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva e traz como protagonista Eunice Paiva (Fernanda Torres), mulher que precisou lidar com o sequestro e o assassinato de seu marido — o ex-deputado Rubens Paiva — no período da ditadura militar (1964-1985). >
O casal tinha cinco filhos - um deles, Marcelo.>
O filme traz a incansável busca de Eunice por justiça por seu marido e sua família, o que a transformou em um símbolo de resistência contra a ditadura militar. Ao mesmo tempo, mostra como ela manteve firme a sua família>
"Eunice Paiva não se deixou vitimizar, enfrentou um regime autoritário acreditando nas instituições, arquitetou formas de resistência únicas. Sorriu quando lhe pediram para chorar. Escolheu a vida", disse Walter Salles em entrevista à BBC News Brasil, antes do Oscar acontecer.>
Outra filha do casal, Eliana Paiva disse também em entrevista à BBC News Brasil que é importante que as pessoas não percam a dimensão de que o filme também tem o objetivo de jogar luz sobre o período da ditadura militar, que governou o Brasil entre 1964 e 1985, um período marcado por perseguição a militantes de esquerda, prática de tortura e desaparecimentos forçados como o do seu pai. >
"A gente festeja um Oscar e está achando tudo muito bom em termos de denúncia, mas antes de qualquer coisa, é a denúncia de um assassinato brutal dentro de um quartel de Exército no Brasil. Do que a gente está tratando é de um assassinato", disse Eliane Paiva.>
Desde que filme brasileiro começou a ganhar tração internacionalmente com suas participações em festivais, críticos do mundo inteiro começaram a escrever sobre ele - na maior parte, de maneira elogiosa.>
A produção atingiu 97% de aprovação dos críticos no Rotten Tomatoes, uma plataforma que agrega avaliações da imprensa especializada. O índice alto foi atingido com a média de 156 críticas em sites de cinema em todo o mundo.>
O filme, por exemplo, entrou na lista dos melhores filmes de 2024 da BBC.>
Para Caryn James, crítica de cinema da BBC, Ainda Estou Aqui era muito mais que um azarão [na corrida do Oscar]".>
"Por trás dessas [três] indicações [do filme ao Oscar] está uma mistura alquímica do pessoal, do político e do artístico. Poucos filmes retrataram os efeitos devastadores da política sobre os indivíduos de uma forma tão íntima, visceral ou oportuna, chegando em um momento em que a ascensão do autoritarismo se tornou uma preocupação global", diz James.>
O jornal britânico The Times descreveu Ainda Estou Aqui como "um dos maiores filmes sobre maternidade", comparando-o a clássicos como Mildred Pierce e Room (Quarto, em português). A crítica destaca a autenticidade do filme e a transformação de Eunice, interpretada por Torres, cuja busca incansável por justiça e fechamento ao longo de quatro décadas impulsiona a narrativa.>
Para Walter Salles, na entrevista à BBC News Brasil, "não é um filme que está sendo reconhecido, e sim toda a cinematografia brasileira.">
"Esse filme, mais do que qualquer outro que dirigi, foi feito para oferecer um reflexo do Brasil em um momento complexo de sua história, para o público brasileiro. Esse é o propósito do filme. Depois vêm os prêmios que o filme pode vir a receber, ou não", disse o cineasta.>
A crítica de cinema brasileira Isabela Boscov disse que Ainda Estou Aqui representa um novo fôlego para a indústria nacional de cinema.>
Um papel semelhante ao que Central do Brasil — também dirigido por Walter Salles e estrelado por Fernanda Montenegro, mãe de Fernanda Torres — desempenhou quando foi lançado, em 1998.>
"Naquele momento, a retomada do cinema brasileiro era algo recente", disse Boscov.>
"Walter Salles fez um filme sobre o terror político e social do período Collor, que foi Terra Estrangeira. Depois, Central do Brasil surgiu como uma possibilidade de um novo pacto social, de uma retomada da ética e da valorização do cinema", prossegue.>
"Estamos passando por algo parecido agora, depois de um período em que a cultura foi muito massacrada no país.">
Mas, claro, nem todos se encantaram tanto com o filme.>
Peter Bradshaw, crítico britânico do The Guardian, escreveu que "o filme – na sua lealdade ao autocontrole da própria Eunice – ignora o horror e a raiva que certamente também devem estar presentes em algum lugar desta história.>
"Os créditos finais, nos contando brevemente em que data Rubens foi assassinado, e também a data em que quatro agentes de segurança foram finalmente acusados, mas não condenados, são, retroativamente, desconcertantes. Há um mundo de drama e indignação nessas breves informações, mas isso nunca chega realmente ao filme", escreve Bradshaw.>
Na opinião do jornalista e cinéfilo Saymon Nascimento. "Críticas não existem para que você concorde com elas, mas para abrir horizontes", diz.>
Para ele, Ainda Estou Aqui restringe seu olhar sobre a ditadura militar à esfera familiar e ao luto de Eunice Paiva. "O filme tem algum tipo de resistência a ser político de fato", argumenta.>
Na Folha de S. Paulo, o crítico Inácio Araújo fez comentários semelhantes à obra.>
"Toda vez que o cinema de Walter Salles deriva para um tema ou personagem direta ou indiretamente político, sua delicadeza tende a levar esse tema para uma esfera curiosamente apolítica".>
Em meio às discussões sobre o filme e a época que ele retrata, o Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a analisar ações que questionam a Lei de Anistia, que perdoou crimes cometidos na Ditadura Militar (1964-1985).>
Após anos sem julgar o tema, a Corte decidiu em fevereiro dar repercussão geral a recursos que tentam destravar processos criminais contra acusados de matar opositores do regime, entre eles o deputado Rubens Paiva >
Quando um caso recebe repercussão geral significa que a decisão do STF valerá para todos os processos semelhantes em andamento no país. A Corte, no entanto, ainda vai julgar o mérito desses recursos — ou seja, decidir se a Lei da Anistia deve ou não ser revista. E não há previsão de data para isso por enquanto.>
Para juristas especialistas em Lei da Anistia ouvidos pela BBC News Brasil, a retomada do tema no STF foi impulsionada pelo filme.>
"Com certeza. Estava tudo parado há anos", ressaltou à BBC News Brasil Sérgio Suiama, do Grupo de Trabalho Justiça de Transição do Ministério Público Federal (MPF).>
Ele é um dos autores da denúncia criminal apresentada em 2014 contra cinco ex-integrantes do sistema de repressão da ditadura militar acusados de assassinato e ocultação do cadáver de Rubens Paiva. Depois disso, porém, três já morreram.>
A denúncia foi aceita pela Justiça em primeira instância e o Tribunal Regional da 2ª Região confirmou a abertura do processo, mas uma decisão do STF parou o andamento do caso ainda em 2014, por entender que violava a Lei da Anistia.>
Depois disso, porém, o Brasil foi condenado duas vezes na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que entendeu que a Lei da Anistia impede a investigação e a responsabilização de graves crimes contra a humanidade, sendo incompatível com a Convenção Americana do tema.>
As condenações internacionais deram fôlego a novos recursos no STF, mas a Corte passou a evitar a a questão. A demora é tal que três dos cinco militares acusados pelo crime de Rubens Paiva já morreram.>
Já os defensores da Lei da Anistia, adotada em 1979, dizem que ela foi necessária para "pacificar" o país e abrir espaço para o fim do regime militar, que só acabou em 1985.>
Em paralelo, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, reabriu o caso em abril de 2024.>
O objetivo é investigar e produzir mais provas que comprovem o que aconteceu com Rubens Paiva.>
Além do caso de Paiva, está em análise tentativas de processar acusados das mortes de Mário Alves de Souza Vieira, dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), e de Helber José Gomes Goulart, militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN).>
Rubens Paiva foi eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em 1962. Com a instalação do regime militar, em 10 de abril de 1964, seu mandato foi cassado, levando-o ao exílio na antiga Iugoslávia.>
Após retornar ao Brasil em novembro do mesmo ano, Paiva estabeleceu-se com a família em São Paulo e, posteriormente, no Rio de Janeiro, em uma residência na Avenida Delfim Moreira, no bairro do Leblon, que é retratada no filme.>
Paiva foi preso em 1971 e dado como desaparecido. Sua morte, confirmada só 40 anos mais tarde, segue até hoje sem que os culpados tenham sido responsabilizados.>
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