Publicado em 15 de maio de 2025 às 16:39
"Nós revelamos a notável diversidade genômica dos brasileiros, com a identificação de mais de 8 milhões de novas variantes.">
Essa é uma das frases que abrem um estudo assinado por 24 pesquisadores de 12 instituições diferentes, que acaba de ser publicado no prestigiado periódico acadêmico Science.>
A investigação traz os resultados do sequenciamento genético completo de 2.723 indivíduos que representam praticamente todas as regiões do Brasil.>
Segundo os autores do trabalho, a descoberta pode trazer uma série de implicações em termos de saúde — como a identificação de genes ligados a doenças e testes de DNA mais confiáveis.>
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Eles também destacam que os resultados escancaram a falta de diversidade nos bancos de dados sobre genética espalhados pelo mundo, que têm uma representatividade muito maior de povos da Europa e da América do Norte.>
Entenda a seguir todos os detalhes da nova pesquisa e como ela pode inspirar políticas públicas — e gerar novos diagnósticos ou tratamentos no futuro.>
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O DNA é o conjunto de informações que determina boa parte de nossas características físicas e psicológicas, além da propensão a desenvolver certas enfermidades.>
Essas moléculas ficam organizadas nos cromossomos, que estão guardados no núcleo de todas as células que compõem nosso corpo (com exceção dos espermatozoides e dos óvulos).>
Nas últimas décadas, a evolução da tecnologia garantiu o surgimento dos sequenciadores, as máquinas capazes de analisar o material genético e decifrar esse código de letrinhas que determinam uma grande parcela de quem somos.>
A maioria dos genes são idênticos em todos os seres humanos. Mas há uma parcela deles que difere de um indivíduo para o outro.>
E é isso que vai determinar de coisas simples, como a altura, a cor dos olhos, o formato do cabelo, a questões mais complexas, como o risco aumentado ou diminuído de ter um câncer ou de sofrer com Alzheimer.>
Nesse contexto, o estudo recém-publicado na Science teve como objetivo sequenciar o genoma de uma parcela significativa e representativa da população brasileira, para entender quais as características que nos diferenciam de outros povos espalhados pelo mundo.>
Esse projeto foi anunciado em 2019 com o nome "DNA do Brasil" e contou com o apoio inicial da Dasa, uma empresa do setor de saúde, e da Google Cloud, sistema de armazenamento de dados na nuvem.>
No ano seguinte, a iniciativa foi oficialmente abraçada pelo Ministério da Saúde, que criou o Programa Nacional de Genômica e Saúde de Precisão – Genomas Brasil.>
"Nesse meio tempo, ainda precisamos lidar com a pandemia de covid-19, que complicou as coisas por dois anos", lembra a geneticista Tábita Hünemeier, uma das responsáveis pelo projeto.>
"Foi um trabalho homérico", complementa a especialista, que atua no Laboratório de Genômica Populacional Humana da Universidade Pompeu Fabra em Barcelona, na Espanha.>
Vale destacar que esses 2,7 mil genomas sequenciados representam a primeira leva de resultados.>
Os cientistas esperam publicar em breve novas análises, que levam em conta as informações genéticas de cerca de 12 mil brasileiros e ampliam os grupos analisados ao incluir mais quilombolas, ribeirinhos e caiçaras.>
Esse grande banco de dados — o primeiro dessa magnitude na América Latina — será controlado pelo Ministério da Saúde e ficará disponível para que outros cientistas possam fazer estudos independentes nos próximos anos.>
A pesquisa comparou os quase 3 mil genomas brasileiros com outras 270 mil sequências de DNA colhidas em outras partes do mundo.>
E, como mencionado no início da reportagem, foram encontradas 8.721.871 novas variantes (ou mutações) entre indivíduos que nasceram no Brasil.>
Mas o que isso significa na prática?>
"Por que será que a gente encontrou tantas variantes novas, que ainda não haviam sido descritas em outras partes do mundo? Não é porque somos marcianos…", brinca a pesquisadora Lygia da Veiga Pereira, que lidera o Projeto DNA do Brasil.>
"Isso acontece porque os bancos de dados genômicos disponíveis até hoje vêm predominantemente de populações de ancestralidade europeia", responde ela, que também é professora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).>
E, como a História nos conta, o povo brasileiro é constituído a partir da mistura de ancestralidades indígenas, africanas e europeias, entre outras.>
"Isso só mostra o quanto a gente tem a contribuir para o conhecimento, até em termos de biologia humana", defende Pereira.>
Hünemeier confessa que intuitivamente os pesquisadores já esperavam encontrar um grande número de variantes genéticas entre brasileiros.>
"Mas, quando a gente vê esses números, isso corrobora de maneira espetacular para essa noção de que há muitas populações que são sub-representadas nos bancos de dados", reflete a cientista, que também atua no IB-USP.>
"A diversidade africana e indígena é pouco estudada. Mas mesmo alguns povos europeus que migraram e contribuíram para a diversidade brasileira, como os italianos, não aparecem muitos nos estudos genômicos maiores, que focam mais em Reino Unido, Estônia, Finlândia…", contextualiza a geneticista.>
"Nosso trabalho mostra quanta variabilidade existe no mundo que ainda não foi estudada, porque os genomas captados até agora eram muito similares", complementa ela.>
Mas o estudo brasileiro deu um passo além: com o auxílio de algoritmos e programas de computador, foi possível identificar, no universo das 8 milhões de mutações, um total de 36.637 variantes "com efeitos nocivos e potencialmente impactantes" em termos de saúde.>
Ou seja, o trabalho identificou dezenas de milhares de sequências genéticas inéditas, em sua maioria desconhecidas pela Ciência, que têm alguma repercussão do ponto de vista biológico.>
"Em populações humanas, muitas mutações parecem não ter um efeito deletério e só são responsáveis por cada um ser um pouquinho diferente do outro", explica Pereira.>
"Mas essas 36 mil podem ter um impacto clínico, de saúde, na população brasileira", complementa ela.>
Agora, especialistas podem se debruçar sobre todas essas mutações — a começar pelas mais frequentes ou impactantes — para entender o papel delas e as possíveis formas de intervenção por meio de ferramentas de diagnóstico ou novos tratamentos.>
"Temos que entender todas essas informações, até porque algumas delas devem ter um impacto grande em termos de saúde", projeta Hünemeier.>
Pereira dá um exemplo de como isso pode gerar resultados práticos.>
Há alguns anos, cientistas identificaram em algumas populações certas mutações no gene PCSK9, que está relacionado aos níveis de LDL (o colesterol ruim) no organismo.>
E isso inspirou a criação de um novo tratamento medicamentoso — uma classe de remédios conhecida como inibidores do PCSK9 — considerada hoje uma das melhores opções para tratar o LDL acima das metas saudáveis.>
De acordo com os pesquisadores, entender essas particularidades, ou as mutações genéticas mais frequentes, que geram doenças na população brasileira (e não aparecem em outros lugares), é importante para lançar estratégias de saúde e desenvolver novos exames e tratamentos moldados às necessidades do país.>
"Ainda estamos distantes disso, mas no futuro poderemos ter políticas públicas voltadas a quem tem essas variantes", projeta a pesquisadora Maria Cátira Bortolini, que também assina o artigo na Science.>
"A partir deste estudo, conseguimos provar que temos uma ancestralidade bem diferente do que é observado em outros países e talvez precisemos de tratamentos diferentes daqueles que foram desenvolvidos pela indústria farmacêutica com base na população europeia ou norte-americana", sugere a especialista, que também é professora titular do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).>
O estudo recém-publicado detectou no DNA do brasileiro evidências de uma seleção de genes relacionados ao funcionamento de certos aspectos do organismo.>
Ao analisar a mistura das três principais ancestralidades que formam o país (indígena, europeia e africana), foram encontrados traços ligados à fertilidade, ao funcionamento do sistema imune e ao metabolismo.>
Em outras palavras, aqui entra o conceito clássico darwiniano da seleção natural.>
Diferentes características genéticas se mostraram vantajosas num determinado momento do tempo e do espaço — e foram passadas para as futuras gerações.>
Em trabalhos anteriores, Hünemeier e Pereira demonstraram que algumas populações indígenas da Amazônia possuem um gene que os protege da doença de Chagas, uma infecção causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi, transmitido pela picada e pelo contato com as fezes do inseto conhecido popularmente como barbeiro.>
Esse é um exemplo de como certas características que aparecem no DNA podem favorecer um grupo de indivíduos e são passadas adiante.>
"Podemos entendê-los como sinais de que houve alguma seleção natural, ou seja, que as pessoas que possuíam essas variantes tinham algum tipo de vantagem", reforça Pereira.>
No artigo publicado na Science, foram encontrados traços genéticos de fertilidade ligados à espermatogênese (fabricação de novos gametas masculinos), número de filhos nascidos vivos, idade da menarca (primeira menstruação) e da menopausa.>
Já no metabolismo, os pesquisadores observaram características relacionadas ao peso corporal, ao Índice de Massa Corporal (IMC), níveis de LDL e duração do sono.>
Por fim, em relação ao sistema imunológico, há elementos como defesa contra retrovírus, regulação de alguns tipos de células de defesa e a resposta imune inata (presente desde o nascimento da pessoa).>
Bortolini pondera que a seleção natural de certos genes e a visão de que eles são favoráveis ou prejudiciais está muito ligada ao lugar e ao contexto da época.>
"Isso se relaciona à história de adaptação de diferentes populações e faz parte de um arcabouço genético selecionado dentro dos grupos ancestrais. Mas o que isso implica no mundo contemporâneo é outra conversa", diz ela.>
Imagine, numa situação hipotética, que um desses genes desacelera o metabolismo da gordura no sistema digestivo.>
Há três séculos, isso era algo excelente e pode até ter garantido a sobrevivência das pessoas que portavam essa variante. Afinal, a oferta de alimentos gordurosos e calóricos era bem menor e essa demora na metabolização garantia um aporte de nutrientes por um tempo prolongado..>
O problema é que o mundo mudou: hoje em dia, é muito mais fácil obter e ingerir grandes quantidades de comida cheia de gordura. Nesse contexto, uma metabolização lenta pode levar a problemas como obesidade e doenças cardíacas.>
Ou seja: é possível que um atributo considerado uma benção para as gerações passadas se transformou numa espécie de maldição para quem vive hoje.>
"A seleção de um gene pode ser positiva ou negativa, a depender como o ambiente em que aquele sujeito vive se modifica ao longo da História", resume Hünemeier.>
Além disso, entender todas essas interações — e o que pode ser feito hoje para lidar com esse perfil genético herdado pela população brasileira atual — se transforma num caminho para encontrar estratégias preventivas mais eficazes, ou lançar programas de tratamentos ligados às doenças metabólicas mais comuns, por exemplo.>
Conhecer porque algumas pessoas são imunes a alguns tipos de infecções também pode abrir portas para novas vacinas ou tratamentos contra essas moléstias.>
Por fim, compreender mais a fundo a genética do povo brasileiro vai permitir que as ferramentas que analisam o DNA fiquem mais assertivas, apontam os especialistas.>
Os testes genéticos se popularizaram bastante nos últimos anos. Há desde as opções consideradas recreativas, que permitem saber sobre sua própria ancestralidade, até exames que avaliam as características de um tumor e determinam os remédios que serão prescritos pelo médico.>
Esses testes fazem uma comparação entre o genoma de um indivíduo e uma base de dados genéticos de milhares de outras pessoas.>
E o problema aqui é o mesmo citado no início da reportagem: essas bases de dados genéticos concentram uma maioria de europeus e norte-americanos.>
Portanto, usá-las para fazer a comparação com um DNA que vem do Brasil pode gerar um resultados um tanto imprecisos, já que até agora não se levava em conta toda a diversidade genética observada em nosso país.>
Nesse sentido, os futuros testes genéticos que contem com esses milhares de genomas brasileiros sequenciados estarão, digamos, mais "calibrados" — e trarão resultados cuja confiabilidade será ainda maior.>
"Ter um banco de dados das variações genéticas representativas do Brasil vai auxiliar na interpretação de testes, que se tornarão mais precisos para uma ancestralidade que não é branca ou europeia", conclui Pereira.>
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