Publicado em 9 de agosto de 2025 às 21:25
No dia 14 de julho de 1960 (65 anos atrás), uma jovem inglesa autodidata, sem formação nem conhecimento científico formal, desembarcou na Reserva Ambiental de Gombe Stream, na Tanzânia. Ela começava o que viria a se tornar um estudo pioneiro dos chimpanzés selvagens.>
Suas descobertas revolucionariam nosso conhecimento sobre o comportamento dos animais e mudariam a própria forma como nos definimos enquanto seres humanos.>
Com apenas 26 anos de idade, Jane Goodall já sonhava há muito tempo em estudar e viver com os animais.>
"Aparentemente, desde que eu tinha um e meio ou dois anos de idade, eu costumava estudar insetos, qualquer coisa, e isso gradualmente evoluiu, se desenvolveu e cresceu", contou ela em 1986 ao apresentador de TV Terry Wogan (1938-2016), no seu programa de entrevistas apresentado pela BBC.>
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"Mais tarde, eu li livros como A História do Doutor Dolittle e Tarzan, e a África passou a ser meu objetivo.">
Quando saiu da escola, Goodall fez um curso de secretariado enquanto trabalhava como garçonete e assistente de produção de filmes, para financiar sua ambição da infância.>
Em 1957, ela havia finalmente economizado dinheiro suficiente para viajar e ver uma amiga em Nairóbi, no Quênia.>
Durante sua estada, ela conseguiu encontrar o renomado paleoantropólogo queniano-britânico Louis Leakey (1903-1972). Sua esperança era apenas de conversar com ele sobre os animais.>
Mas Leakey ficou muito impressionado com a calma determinação de Goodall e seu extenso conhecimento da vida selvagem africana, acumulado como autodidata. E, como sua secretária havia se demitido recentemente, o professor ofereceu a ela um emprego como sua assistente junto ao Museu de História Natural.>
Leakey passaria, então, a ser mentor de Goodall.>
"Foi ele que me disse, 'bem, estou procurando alguém para ir estudar chimpanzés, pois conhecer o comportamento deles pode aumentar nossa compreensão sobre o comportamento dos primeiros humanos", contou ela a Wogan.>
Leakey considerava que a falta de formação acadêmica da jovem seria uma vantagem, não um obstáculo. Ele acreditava que as observações de Goodall não seriam limitadas por teorias científicas pré-existentes.>
Goodall não estaria sozinha na sua viagem à reserva de Gombe. Para cumprir com as regulamentações de segurança coloniais da época, sua mãe Vanne viajou como sua acompanhante.>
"Inicialmente, eu não tinha autorização para ficar sozinha", contou ela à BBC.>
"O governo britânico da época disse 'Não, é totalmente amoral uma jovem sair para a floresta'. Por isso, precisei escolher uma acompanhante e minha mãe ficou comigo por três meses.">
Os primeiros meses foram difíceis. Goodall e sua mãe ficaram juntas em uma antiga tenda de acampamento do Exército, onde tiveram malária.>
Mesmo quando Goodall já estava suficientemente recuperada para se aventurar pela reserva, ela só podia sair com um acompanhante local. E, muitas vezes, ao ouvirem o som dos passos se aproximando, os chimpanzés simplesmente desapareciam na vegetação rasteira.>
Mas ela aprendeu as trilhas da floresta e começou a se movimentar pelo denso terreno. Foi quando "as autoridades concluíram, bem, que eu era louca e ficaria ok", ela conta.>
Depois que Goodall começou a acampar sozinha nos morros cobertos pela floresta, ela começou a observar os esquivos primatas com seus binóculos, a partir de um pico entre dois vales. Foi ali que Goodall começou a adotar uma abordagem de imersão não ortodoxa.>
Todos os dias, ela se aproximava cada vez mais da área de alimentação dos chimpanzés. Sua esperança era poder se sentar entre os animais e estudá-los mais de perto no seu habitat natural.>
"Eu vestia roupas das mesmas cores todos os dias e acho que o mais importante é que nunca forcei", contou ela em 2014 ao programa de rádio Witness History, do Serviço Mundial da BBC.>
"Nunca tentei chegar perto demais. Eu esperava perto de uma árvore frutífera, para onde eu sabia que os chimpanzés estavam vindo, e, quando eles saíam, eu não os seguia.">
"Não no início, porque eu achava que seria abusar da minha sorte. Por isso, eles acabaram aceitando gradualmente que eu não representava perigo", relembrou ela.>
Quando os chimpanzés perderam a desconfiança em relação a ela, Goodall conseguia se sentar por horas, para observar pacientemente o comportamento e o complexo sistema social da espécie, até então desconhecido.>
Ela descobriu que os chimpanzés, na verdade, não são vegetarianos, como se pensava até então, mas onívoros. E que eles se comunicam entre si para caçar.>
Goodall conseguiu testemunhar a proximidade dos laços familiares dos animais e como a individualidade de cada um deles influenciava o comportamento.>
"Na sociedade dos chimpanzés, a fêmea pode acasalar com todos os machos ou ser levada e mantida por um deles", contou ela a Wogan. "E os machos mantêm laços muito próximos.">
"Eles patrulham as fronteiras do território comunitário, mantêm os estranhos à distância, trazem novas fêmeas jovens para o grupo e todos eles agem como pais simpáticos, tolerantes, gentis e protetores para todos os bebês, dentro daquela comunidade.">
Em vez de usar um sistema de numeração para seus animais, como ocorre tradicionalmente em projetos de pesquisa, Goodall deu nomes aos chimpanzés, reconhecendo a personalidade única de cada um deles.>
Um dos machos recebeu o nome de David Greybeard ("Barba Cinza", em inglês). E foi observando aquele animal que ela percebeu, pela primeira vez, que ele preparava e usava ferramentas — atividades que os cientistas da época consideravam exclusivas dos seres humanos.>
A produção de ferramentas exige pensamento abstrato para conceber seu uso em situações futuras. Esta atividade, de fato, era considerada na época uma das características que definiam o que é ser humano.>
"[Os chimpanzés] usam mais objetos diferentes como ferramentas do que qualquer outra criatura, exceto nós", contou ela a Wogan. "Por exemplo, um pequeno galho. Eles podem retirar as folhas e modificá-lo, para se alimentar de cupins.">
"De um ramo longo, eles podem tirar a casca, se alimentar de uma formiga mordedora muito viciante e, depois, mastigá-la. Folhas são amassadas para beber água de um buraco pequeno que eles não conseguem alcançar com os lábios, ou para retirar sangue do seu corpo.">
"E armas: pedras que são lançadas, galhos usados para intimidação ou como tacos", relembra ela.>
Na época, esta era uma ideia revolucionária. Ela questionava anos de pensamento científico convencional.>
Desde então, as pesquisas trouxeram evidências de uso de ferramentas em todo o reino animal, desde os polvos da Indonésia, que usam cascas de coco descartadas pelos seres humanos como proteção contra os predadores, até os corvos da Nova Caledônia, que dobram galhos e fios com os bicos para criar ganchos, que permitem que eles arranquem larvas das cascas das árvores.>
Enquanto Goodall se sentava em silêncio observando os chimpanzés, ela começou a ver como os laços familiares e a comunicação não verbal deles eram similares aos seres humanos.>
"Se os chimpanzés se encontrarem após uma separação, eles se dão as mãos, eles se abraçam, eles se beijam", contou ela a Wogan. >
A compreensão dessa semelhança com os seres humanos levantou "novas questões sobre a forma como criamos nossos filhos no Ocidente".>
"Bem, se deixarmos uma criança chorando à noite, se a deixarmos por longas horas em um cercadinho, se a levarmos para uma creche onde há mudanças constantes de pessoas, podemos criar uma criança altamente inteligente.">
"Mas, pela nossa experiência com chimpanzés que passaram por dificuldades de criação, existe a sugestão de que aquela criança, quando chegar à idade adulta, pode ter dificuldade para criar relacionamentos próximos com os demais", afirma ela.>
"Eles podem ter dificuldade para lidar com situações estressantes. Isso é muito importante.">
Goodall reconheceu como as emoções e os comportamentos ritualizados dos chimpanzés podem ser muito parecidos com os nossos. E como seus impulsos violentos e destrutivos, como os nossos, podem gerar matanças brutais.>
"Descobrimos depois dos 10 primeiros anos que, embora os chipanzés fossem muito parecidos conosco nos seus modos amigáveis, eles também podem se tornar muito agressivos, como nós", explica ela.>
"Descobrimos que, em certas situações, pode haver canibalismo e também uma interação entre comunidades que, de certa maneira, é uma forma primitiva de guerra humana.">
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Incentivada por Leakey e mesmo sem ter cursado graduação, Jane Goodall começou um PhD em 1962, com base nas suas descobertas excepcionalmente detalhadas.>
Naquele mesmo ano, a National Geographic Society enviou um fotógrafo e cineasta da vida selvagem, o holandês Hugo van Lawick (1937-2002), para documentar o trabalho dela.>
O resultado foi o documentário Miss Goodall and the Wild Chimpanzees ("A Srta. Goodall e os Chimpanzés Selvagens", de 1965). Narrado por Orson Welles (1915-1985), o filme ajudou a levar suas descobertas para o público.>
Van Lawick se tornaria o primeiro marido de Goodall e, em 1967 (um ano depois de ganhar seu doutorado), ela deu à luz o filho do casal, Hugo, que eles apelidaram de Grub.>
Seus pais construíram um abrigo de proteção para permitir que Goodall mantivesse o bebê em segurança, enquanto continuava seu trabalho de campo.>
"Os chimpanzés são caçadores, exatamente como nós", contou ela a Wogan. "Eles caçam mamíferos de porte médio de forma cooperativa.">
"Havia registros de chimpanzés caçando crianças humanas, da mesma forma que os seres humanos caçam chimpanzés. Por isso, quando era muito pequeno, antes que aprendesse a andar, ele [Hugo] ficava em uma espécie de varanda engaiolada e sempre precisávamos ter pessoas por perto.">
As pesquisas revolucionárias de Jane Goodall no setor da primatologia trouxeram evidências de que os seres humanos não estão separados do restante do reino animal, mas que o Homo sapiens e os chimpanzés compartilham um mesmo ancestral comum.>
Desde então, as pesquisas demonstraram que os chimpanzés são incrivelmente próximos dos seres humanos, em termos genéticos. Eles compartilham cerca de 98,6% do nosso DNA.>
"Este é o ponto", destaca Goodall. "O comportamento que observamos hoje nos homens e nos chimpanzés, provavelmente, era daquele ancestral comum.">
"Por isso, podemos imaginar as pessoas da Idade da Pedra com longos relacionamentos amistosos entre seus familiares, usando pequenos galhos para se alimentar e se abraçando uns aos outros. Gosto de pensar nisso.">
Leia a versão original desta reportagem, com o vídeo da entrevista de Jane Goodall à BBC em 1986 (em inglês), no site BBC Culture.>
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