Publicado em 30 de dezembro de 2025 às 11:29
Há 27 anos, Karl Bushby deixou Hull, no Reino Unido, para percorrer a pé 58 mil km ao redor do mundo. Em setembro de 2026, o ex-paraquedista espera voltar à cidade natal, onde sua mãe, que ele descreve como sua fã número um, estará à sua espera.>
"Estarei aqui", diz Angela Bushby, 75, enquanto percorre com o olhar o ambiente que guarda memórias preciosas.>
"Não estarei no túnel [sob o Canal da Mancha, entre a França e o Reino Unido]. Estarei aqui, em Hull, esperando que ele atravesse aquele portão e, depois de lhe dar um abraço, vou dizer: '… e que horas são essas, Karl?'">
Karl Bushby deixou o Chile (América do Sul) em novembro de 1998, com o objetivo de voltar para casa caminhando, sem usar nenhum meio de transporte.>
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Ele acreditava que a expedição levaria 12 anos. A geopolítica, guerras e a dificuldade para obter vistos atrasaram o progresso, mas agora, prestes a entrar na Áustria, Karl se prepara para o reencontro com sua família.>
Eu estou com Angela na sala de estar de sua casa no conjunto habitacional Sutton Park, em Hull. É a casa da infância de Karl.>
Desde 1998, ela viu o filho apenas três vezes, incluindo antes de ele se tornar o primeiro britânico a atravessar o congelado estreito de Bering, entre a América do Norte e a Rússia, em 2006.>
Sentada em sua poltrona, Angela olha para as fotografias do filho e diz: "Ele certamente me tirou o sono algumas vezes, posso lhe garantir. É um milagre eu não estar com todos os meus cabelos brancos!">
Ela acrescenta: "Ele ainda é meu menininho. Toda mãe pensa assim, não importa como eles sejam ou o que façam".>
Foi nesta sala em que ela fala com a BBC que Karl apresentou a Angela seu plano para a Expedição Golias, com o apoio do pai, Keith, ex-soldado do Serviço Aéreo Especial do Reino Unido (Special Air Service, SAS).>
"Fiquei de queixo caído quando Karl me contou o que pretendia fazer", diz Angela, aposentada de uma fábrica de salgadinhos e divorciada do pai de Karl.>
Sobre a mesa de centro, repousa uma pilha de fotografias da família. E uma imagem se destaca: um menino de cabelos claros se prepara para subir em um galho de árvore, enquanto o irmão o segura. O garoto mais velho parece totalmente concentrado.>
"Karl sempre foi teimoso", diz Angela. "Quando Karl põe algo na cabeça, ele vai lá e faz.">
Na parede, há fotografias de Karl e do irmão, Adrian, dois anos mais novo, que registram a trajetória de ambos no Exército.>
Karl aparece usando a boina vermelha escura e as "asas" do Regimento de Paraquedistas.>
À primeira vista, pode parecer que Karl passou, com facilidade, de uma aventura a outra.>
"Ele não teve vida fácil", diz Angela, batendo de leve no vidro que protege a fotografia da cerimônia de formatura militar do filho.>
Karl, então um adolescente em boa forma física, mas franzino, precisou de várias tentativas para ser aprovado no P Company, a unidade de seleção e treinamento pré-paraquedista da força aerotransportada do Exército britânico.>
Segundo a mãe, garra e determinação, combinadas com o desejo de honrar a si mesmo e à família, fizeram com que ele superasse as dificuldades.>
A sala de estar de casa também foi o lugar onde Angela consolou o filho quando ele foi alvo de bullying na escola pública da região.>
"Karl era chamado de burro e estúpido", afirma. "Ele não era nenhuma dessas coisas. Ele sofreu muito na escola.">
Karl descreve aqueles anos como "um inferno".>
"Ele tinha 13 anos quando foi diagnosticado com dislexia", diz Angela, cujo filho concordou que ela compartilhasse os detalhes, na esperança de que sua história de superação inspire outras pessoas.>
"Quando ele soube que havia um motivo para as dificuldades, decolou. Não havia mais como segurá-lo. Encontrou maneiras de contornar a condição e passou a gostar de ler. Teve de trabalhar muito duro para chegar onde está.">
Angela mantém álbuns de recortes com reportagens de jornais que registram a trajetória de Karl.>
Até agora, ele já caminhou pela América do Sul, Central e do Norte, além de partes da Ásia, antes de entrar na Europa.>
Em 2024, nadou 300 km pelo mar Cáspio (entre Ásia e Europa) para evitar ter de entrar novamente no Irã ou na Rússia, onde enfrentou dificuldades para obter vistos.>
Ele está prestes a deixar a Hungria e entrar na Áustria.>
Pergunto a Angela se ela acha que o filho, diante dos fortes vínculos da família com a carreira militar, estava destinado a levar uma vida tão movida à adrenalina.>
"Na verdade, não", diz ela. "Quando criança, ele nunca me deu trabalho. Sempre foi um menino adorável. Karl sempre gostou de estar ao ar livre.">
"Era um sacrifício fazê-lo voltar para dentro de casa à noite. Ele adorava observar pássaros nos campos.">
Angela faz um gesto em direção às portas de vidro que dão para o quintal.>
"Ele sempre quis estar lá fora", afirma.>
Os campos, território das aventuras de Karl, desapareceram há muito tempo, substituídos por casas.>
Para Angela, as décadas trouxeram uma mistura intensa de orgulho e preocupação.>
Sua memória volta a abril de 2006, quando chegou a notícia de que Karl havia alcançado a Rússia após 14 dias caminhando sobre placas de gelo instáveis, sob temperaturas que chegavam a –30°C.>
"Houve um alívio por ele ter conseguido", diz Angela. "Pouco antes de sair do Alasca [EUA], ele pediu para ver a família, caso algo lhe acontecesse. Todos nós fomos para lá. Ele sabia que havia uma chance muito grande de não conseguir.">
"Eu estava no trabalho quando alguém me contou que tinha ouvido no rádio que Karl havia sido preso por entrar ilegalmente na Rússia. Meu coração quase parou.">
Angela também se recorda de uma ocasião em que Karl experimentou uma bebida que lhe foi oferecida na América do Sul.>
"Ele disse que as árvores começaram a andar em direção a ele e que o céu já não parecia o mesmo de antes, aparentemente", relata Angela. "Quando ele me contou, fiquei furiosa por ter provado aquilo.">
Angela claramente sente muita falta do filho.>
"No começo da caminhada, eu recebia telefonemas de vez em quando", diz. "Hoje em dia, a gente costuma se falar pelo [aplicativo de mensagens] Messenger.">
Angela guardou presentes para Karl ao longo dos anos.>
"Continuei comprando um presente de Natal para ele todos os anos", afirma. "Ele vai ter vários para abrir. Quando contei, ele disse: 'Mãe, você deve estar louca'.">
Mas isso ajuda Angela.>
Ela admite que se preocupa com a forma como Karl vai se readaptar à vida em sociedade quando voltar para casa.>
"Não sei o que ele vai fazer", diz, com ar pensativo. "Espero que ele acabe ficando aqui.">
Angela fica perdida em seus pensamentos.>
"Mas acho que não vai acontecer. Não acho que ele vá conseguir ficar parado em um só lugar depois de viajar por tanto tempo.">
Mais tarde, por telefone, Karl conta à BBC sua reação ao comentário de sua mãe: "Que horas são essas?">
"Essa é a hora da verdade", responde.>
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