Publicado em 6 de abril de 2023 às 20:58
- Atualizado há 3 anos
Christian Ally Moussa, de 42 anos, estava se preparando para a audiência do seu processo para obter cidadania francesa. >
Depois de anos economizando para pagar as taxas do processo, ele seria finalmente capaz de reivindicar o passaporte europeu que era seu direito de nascença.>
O pai dele era um cidadão francês da ilha de Mayotte, no Oceano Índico, um território francês. Mas como Christian nasceu e foi criado na ilha de Madagascar, a cerca de 350 km de distância, ele teve dificuldade de ser reconhecido como cidadão francês.>
Christian estava vivendo e trabalhando informalmente há anos no território francês. >
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Faltando apenas algumas semanas para sua audiência no processo de cidadania, ele foi inesperadamente preso pela polícia de fronteira francesa e deportado de volta para Madagascar. >
Christian fez então uma tentativa desesperada de voltar a tempo para sua audiência - de barco.>
A ilha de Mayotte tem uma população de 300 mil pessoas, além de ser mundialmente famosa por seus recifes de coral e laguna. >
É a parte mais pobre da França, mas "rica" em comparação com as ilhas vizinhas de Madagascar e Comores, situadas na costa sudeste da África.>
Assim como tantos outros trabalhadores não registrados, Christian sustentava sua esposa e filhos em Madagascar.>
Um parente retoma sua história. Não vamos identificá-lo para sua segurança.>
"Eles [a polícia de fronteira] invadiram e queriam levar Christian embora", diz o familiar.>
"Ele me pediu para ir buscar os sapatos dele, mas quando voltei, já haviam levado ele embora.">
O parente conseguiu localizar Christian no único centro de detenção da capital. >
"Falamos por telefone. Ele estava chorando muito e disse que não queria voltar para Madagascar", recorda.>
O parente fez contato com um advogado que entrou com um recurso de emergência para impedir sua deportação. Christian deveria comparecer perante um juiz às 11h do dia seguinte, mas a essa altura ele já estava em um voo de volta para Madagascar, menos de 48 horas depois de ser detido.>
Embora a esposa e os filhos de Christian estivessem em Madagascar, ele sabia que não conseguiria ganhar dinheiro suficiente para sustentá-los.>
Os dados mais recentes do Banco Mundial mostram que quatro em cada cinco pessoas em Madagascar vivem com menos de US$ 2,15 por dia (pouco menos de 2 euros). >
Enquanto isso, 42% dos moradores de Mayotte vivem com menos de 160 euros por mês, segundo dados oficiais franceses.>
Christian sabia que um passaporte francês permitiria a ele se tornar um residente legal e usufruir de mais oportunidades, então ele decidiu voltar para a audiência, sem contar a ninguém.>
"Eu não sabia que ele queria fazer a viagem de volta para Mayotte", diz o parente. >
"Ele não falou nada para mim, nem para os amigos dele. Ele só pediu dinheiro porque disse que estava doente e precisava de remédio porque não havia água potável no vilarejo.">
"Então, quando as autoridades me ligaram para dizer que ele havia sido encontrado morto, eu disse a eles: 'Não, não é ele. Não pode ser ele'. Eles então enviaram fotos, e eu reconheci seu rosto.">
Christian foi uma das pelo menos 34 pessoas encontradas afogadas na costa de Madagascar em 12 de março. Era a terceira vez que fazia esta viagem num pequeno barco de pesca conhecido localmente como kwassa kwassa.>
"A laguna ao redor da ilha é um cemitério a céu aberto", diz Daniel Gros, da ONG Human Rights League, de Mayotte. >
"Quando cheguei, em 2012, as autoridades costumavam dizer que estimava-se que cerca de 10 mil pessoas haviam morrido ali. E hoje dão o mesmo número. Ninguém tentou nem sequer contar quantas pessoas podem ter morrido atravessando a laguna.">
Mayotte tem ganhado espaço no noticiário devido a rebeliões e distúrbios causados por um aumento na imigração, proveniente principalmente da ilha vizinha de Comores, que está sobrecarregando os serviços públicos. >
O governo francês diz que uma em cada duas pessoas que vivem na ilha é "estrangeira" e prometeu medidas de repressão. Atualmente, 24 mil pessoas são deportadas por ano.>
A deputada francesa por Mayotte, Estelle Youssouffa, pediu a Paris que adote uma postura mais rígida em relação a Comores.>
"Pedimos a instalação na ilha de uma base permanente da Marinha nacional dedicada ao combate à migração clandestina", declarou a parlamentar de centro-direita ao canal de TV francês BFMTV em janeiro.>
Mas grupos de direitos humanos temem que as crianças estejam sofrendo as consequências. >
Um jovem pai que prefere não se identificar anda de um lado para o outro do lado de fora de um centro de detenção na capital, Mamoudzou. Ele diz que a filha de 13 anos está lá dentro, presa com um membro da família.>
"Ela é menor de idade, não é normal que ela acabe presa, em vez de estar na escola", diz ele. >
"Estamos fazendo tudo o que podemos para dar um futuro melhor a ela.">
O governo francês está planejando uma grande demolição do que considera moradias ilegais na ilha de maioria muçulmana após o Ramadã. E aumentou a presença de efetivo policial e paramilitar na ilha para 1,3 mil agentes como parte da Operação Wuambushu.>
Ao norte da capital, em uma comunidade chamada Majikavo, as autoridades locais já estão marcando algumas das moradias de chapa de ferro ondulada. >
"Vivemos sob constante ameaça", diz Fátima, que mora lá há 15 anos. >
"Eles disseram: 'Quer você aceite ou não, este lugar será destruído'.">
Fátima possui um visto de residência que permite a ela permanecer na ilha, mas não viajar para a França continental.>
De acordo com a lei francesa, o governo precisa oferecer "acomodação alternativa adequada" para aqueles cujas casas serão destruídas. Mas até agora, não havia nenhum plano claro de realocação publicado, embora tenha sido oferecido a alguns residentes acomodação emergencial por seis meses. >
O governo francês recusou o pedido de comentário para esta reportagem.>
Ativista de direitos humanos, Daniel Gros é altamente crítico do que ele descreve como "mão pesada" do Estado francês. >
"Se você expulsar as pessoas, não deve se surpreender que elas voltem. Deportamos centenas de pessoas por dia, mas temos barcos chegando com um número semelhante de pessoas ao mesmo tempo. O Estado quer mostrar ao povo francês que está fazendo algo em relação à imigração.">
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c721jndvy04o>
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