Publicado em 7 de abril de 2025 às 15:39
Nas últimas duas décadas, uma área na Zona Leste de São Paulo — uma das regiões mais populosas da cidade — viu brotar uma verdadeira floresta onde antes só havia entulho e um terreno degradado.>
Com o plantio de dezenas de milhares de árvores, o agora Parque Linear Tiquatira virou um refúgio de lazer e atividade física para os moradores do local, que fica na Vila São Geraldo, na divisa entre os distritos da Penha e do Cangaíba.>
Mais que isso, a existência dessa enorme área verde numa região densamente populada ajuda a lidar com o calor, segundo cientistas e frequentadores, e atrai para a região muitas espécies de aves e outros seres vivos, que não eram vistos ali há muito tempo.>
E todo esse projeto começou com a iniciativa de uma pessoa: Hélio da Silva. >
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Aos 73 anos, ele é mais conhecido como "o plantador de árvores", graças ao trabalho que tomou para si nos últimos 22 anos.>
Nesse período, Silva plantou mais de 41 mil mudas, todas devidamente registradas em fichários e cadernos, e motivou a criação desse parque linear na capital paulista.>
Silva nasceu na cidade de Promissão, no interior paulista, e mudou-se para a capital com a família na infância, quando tinha oito anos de idade.>
Ele mora na Zona Leste da cidade há 65 anos e fez carreira como executivo de importantes empresas do setor açucareiro.>
Antes de ir para o trabalho todas as manhãs, Silva gostava de fazer caminhadas pelo Tiquatira. À época, o local tinha apenas um gramado e algumas árvores esparsas (veja fotos do antes e depois ao longo da reportagem).>
"Numa dessas andanças, percebi que a região estava ficando cada dia mais degradada. Aos poucos, o Tiquatira virava um depósito de lixo, surgiam minicracolândias, pessoas usavam o local como um motel a céu aberto, comerciantes aproveitavam para transformar os terrenos em estacionamentos de carros", lista ele.>
Numa manhã de novembro de 2003, ele teve uma ideia.>
"Falei para a minha esposa: vou mudar tudo aqui nos próximos dez anos", projetou ele.>
"Ela me perguntou o que eu ia fazer. E disse: vou trazer de volta as árvores que existiam aqui há 150 ou 200 anos.">
Silva relata que foi totalmente desencorajado pela família e pelos amigos. Não é que eles não gostassem da ideia, só achavam uma iniciativa dessas poderia incomodar e representar até um risco à segurança dele próprio.>
"Mas pensei: se acontecer tudo o que eles falavam, ou seja, iriam me agredir, destruir as árvores, o poder público e os comerciantes viriam me ameaçar, é aí que faria mesmo", lembra ele.>
Silva viajou para o interior paulista e comprou as primeiras 200 mudas de árvores para iniciar o projeto.>
"Depois de três ou quatro meses do plantio, todas haviam sido destruídas.">
A mesma cena se repetiu na segunda tentativa, quando ele espalhou 400 mudas pelo Tiquatira.>
"E o pessoal me falava: 'Está vendo? Falamos que iam destruir tudo. E agora, o que você vai fazer?'", relata ele.>
"Bem, agora eu vou plantar 5 mil árvores", respondeu à época.>
Silva confessa que via esse desafio como um "gatilho", uma "provocação". A cada árvore destruída, ele sentia a necessidade de plantar mais duas, três ou quantas fossem necessárias para que os opositores da ideia desistissem.>
Após vencer essas primeiras resistências — e as árvores finalmente terem paz para crescer e prosperar — Silva começou a articular apoios para dar continuidade ao projeto.>
Nessa época, ele conheceu um personagem relevante nessa história: Eduardo Jorge, que foi secretário do Meio Ambiente de São Paulo entre 2005 e 2012, durante as prefeituras de José Serra e Gilberto Kassab.>
Em entrevista à BBC News Brasil, Jorge conta que a sua gestão promoveu uma "agenda de adaptação" às mudanças climáticas — e uma das ações era justamente expandir as áreas verdes da cidade.>
O então secretário conheceu Silva no início de sua gestão na secretaria, durante uma feira comercial de produtos orgânicos, onde acabou convidado a visitar o Tiquatira.>
"Eu fui e vi que ele já havia começado a plantar por iniciativa própria, com coragem e determinação. A depender da administração da vez, o projeto que ele havia começado era acolhido e visto com bons olhos; em outras, achavam que ele estava invadindo uma área pública", avalia Jorge.>
"Nós passamos a incentivar o que ele estava fazendo no Tiquatira", pontua o ex-secretário.>
Jorge detalha que orientou os agrônomos e as subprefeituras que atuam nessa parte da Zona Leste de SP a terem "boa vontade, em vez de prejudicar o trabalho" de Silva.>
"Com isso, ele conseguiu acelerar ainda mais o plantio. Hoje, o Tiquatira é o maior parque linear dentro da cidade de São Paulo", comemora o ex-secretário.>
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O termo "parque linear" refere-se ao tipo de área verde que tem mais comprimento que largura.>
No caso do Tiquatira, falamos uma "faixa verde" de 3 km de extensão e 192 mil m² de área que margeia um córrego de mesmo nome. Ele começa nas imediações da Marginal Tietê e segue até a Avenida São Miguel.>
Aliás, o local foi oficialmente reconhecido como parque pela prefeitura em 2008 — embora a densidade atual da vegetação já faça muitos (incluindo o próprio Silva) a considerarem o local uma floresta urbana.>
Segundo os registros de Silva, na época da oficialização do parque ele havia plantado cinco mil árvores. Atualmente, essa conta já ultrapassa a casa das 40 mil.>
Vale destacar aqui que não existe nenhuma lei na cidade de São Paulo que proíba um cidadão de plantar uma árvore numa área pública ou particular.>
No entanto, a prefeitura orienta que as pessoas interessadas em fazer isso solicitem uma autorização junto aos órgãos componentes.>
A Secretaria do Verde e do Meio Ambiente possui, inclusive, um manual para ajudar a escolher a espécie mais indicada para cada local.>
Silva diz que sempre teve como objetivo trazer a Mata Atlântica — um dos seis biomas brasileiros, ao lado de Caatinga, Cerrado, Pantanal, Amazônia e Pampa — de volta à maior metrópole brasileira.>
"A partir da urbanização, a Mata Atlântica foi expulsa, chutada para longe. Mas aqui é o lugar dela. Talvez não seja o nosso lugar, mas garanto que é o dela.">
Não custa lembrar que a Mata Atlântica é o bioma mais devastado do Brasil. Essa região é o lar de 72% da população do país e concentra 80% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional.>
Mesmo assim, restam apenas 24% da Mata Atlântica original. Disso, apenas 12% são consideradas áreas de floresta madura e bem preservada.>
Mas o que significa "urbanizar a Mata Atlântica", como pretende Silva?>
"Isso representa um resgate de nossa própria humanidade, de um convívio saudável com a natureza. Precisamos pensar a partir desse lugar, a metrópole de São Paulo, que está inserida na Mata Atlântica. Urbanizar então é devolver ao local esse direito [de ter mais áreas verdes]", responde o biólogo Cesar Pegoraro, mobilizador da causa Água Limpa da ong SOS Mata Atlântica.>
"Manter uma área verde como essa [o Tiquatira] traz uma série de vantagens para o ambiente urbano e muitos incrementos à qualidade de vida das pessoas. Ter biodiversidade perto de onde moramos é muito importante para a estabilidade humana", complementa ele.>
O especialista destaca como povoados, cidades e civilizações inteiras se instalaram em regiões com rios e natureza — e como essa troca com os recursos naturais foi, é e sempre será importante para a nossa espécie.>
Para transformar o Tiquatira numa área densamente vegetada, Silva foi estudar um pouco de agronomia, para entender como otimizar esse trabalho.>
"É preciso plantar a árvore certa no lugar certo", reforça ele.>
Uma das estratégias que ele adota até hoje é a de plantar uma espécie frutífera a cada 12 mudas que vão para a terra. Todas elas são típicas da Mata Atlântica.>
"Desde o primeiro dia foi assim. Essa é uma maneira de atrair pássaros, de atrair vida", explica ele.>
Hoje em dia, basta fazer uma breve caminhada pelo Tiquatira para ver e ouvir dezenas de espécies de aves — frequentadores já avistaram até tucanos, que voam do Parque Várzeas do Tietê, que fica nas proximidades, até ali.>
"Esses animais são grandes disseminadores de sementes e ajudam muito a plantar e espalhar as árvores", nota Silva.>
Outro ser vivo que passou a aparecer com frequência na região foram as cigarras.>
Quando a reportagem da BBC News Brasil visitou o Tiquatira pela primeira vez em novembro de 2024, o período de acasalamento desses insetos havia terminado há pouco e era possível ver centenas de carapaças deles nos troncos das árvores.>
Após duas décadas de trabalho e 40 mil árvores plantadas, Silva entende que a região está absolutamente transformada.>
"A principal coisa que aconteceu aqui foi o resgate da autoestima das pessoas. Eu sinto o prazer que elas têm ao caminhar no parque", observa ele.>
Quem circula pelo Tiquatira faz uma avaliação parecida. >
Mariana, de 27 anos, realizava uma caminhada no parque quando parou para conversar com a reportagem da BBC News Brasil.>
Ela diz que se sente feliz de ter uma área verde próxima de casa para se exercitar. >
"As pessoas passaram a frequentar muito mais o parque. Agora ele está bonito e bem estruturado. Abriram mais comércios ao redor, então temos mais bares e restaurantes, que atraem muita gente", observa ela.>
Mariana também diz que o Tiquatira ganhou uma importância na vida cotidiana dela. "Esse é um lugar que venho para desestressar, fazer amizades, conhecer as pessoas e observar os bichinhos que passam por aqui", lista ela. >
Já Neide, que circula por essa região de São Paulo há 37 anos e mantém uma barraca onde vende bebidas e alguns petiscos no parque, afirma que "não trocaria o Tiquatira por nada". >
"Esse lugar representa meu trabalho, meus amigos, as várias pessoas que conheci e amo", confessa ela. >
O surgimento dessa verdadeira floresta urbana também ajuda a lidar com problemas cada vez mais frequentes relacionados às mudanças climáticas, como as ondas de calor.>
A física Regina Maura de Miranda, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (Each-USP) explica que as áreas verdes "são extremamente importantes em regiões urbanas".>
"Parques, hortas, paredes com plantas, qualquer espaço com vegetação, todos são sempre bem-vindos", contextualiza ela.>
"Isso se deve principalmente ao conforto térmico. Temos muitas evidências científicas que mostram que bairros arborizados apresentam temperaturas mais amenas.">
A pesquisadora lembra que a Zona Leste de SP é uma das áreas mais impermeabilizadas da cidade.>
"E quando vemos mapas de temperatura de superfície, essa região apresenta uma tendência de ter temperaturas mais altas", compara ela.>
Os frequentadores do parque veem isso na prática.>
"Quando chego no parque, já percebo um frescor. Quando estou no asfalto, nas ruas, mesmo nas proximidades, sinto muito mais calor", relata Mariana.>
"Eu gosto de vir para o Tiquatira porque aqui é frequinho e isso ajuda a aliviar esse calorzão", complementa ela. >
"Se não fossem essas árvores que fazem sombra, estaria bem pior o calor aqui", concorda Neide. >
Silva ainda vai praticamente todos os dias no Parque Tiquatira e continua a plantar árvores — desde o início do projeto, ele custeou do próprio bolso a compra das mudas e de todos os insumos necessários, como adubo e fertilizantes.>
"É muito gostoso plantar uma árvore. E mais gostoso ainda é vê-la crescer e te olhar. Enquanto nós conversamos aqui, elas escutam tudo o que dizemos", acredita ele.>
Silva tem o costume de dialogar com as árvores — e diz que houve respostas, sempre no tempo das plantas.>
O plantador de árvores deseja superar a marca de 50 mil mudas na terra do Tiquatira. Mas não acha que chegar a essa marca representará um fim do trabalho.>
Ele também articula a instalação de pequenas bibliotecas públicas ao longo do parque, para que as pessoas possam pegar livros emprestados.>
E ainda aceita os muitos convites para conversas e palestras, particularmente em escolas, onde deseja inspirar uma nova geração de plantadores de árvores.>
"Eu já fiz um trato com Deus: não vou morrer, vou virar uma árvore.">
"O dia que você quiser conversar comigo, basta vir aqui e falar. E talvez eu até te responda… Só não vale ficar com medo e sair correndo", brinca ele.>
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