Publicado em 7 de agosto de 2023 às 14:26
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou uma lei que autoriza a ozonioterapia em território nacional. A decisão foi publicada no Diário Oficial da União nesta segunda-feira (7/8).>
A lei, proposta em 2017 pelo então senador Valdir Raupp (MDB-RO), reforça que a ozonioterapia é um “procedimento de caráter complementar”, “somente poderá ser realizada por profissional de saúde de nível superior” e precisará ser aplicada com equipamentos devidamente regularizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).>
A regulamentação da ozonioterapia por lei contraria os posicionamentos de diversas entidades médicas do país, que alegam falta de evidências científicas para o uso terapêutico dela. Outros órgãos, como o Conselho Federal de Farmácia, apoiaram a sanção da lei.>
A seguir, você entende o que é a ozonioterapia e como diferentes órgãos nacionais e internacionais se posicionam sobre a prática — muitos deles alertam para o risco de essa abordagem atrasar a adoção de tratamentos comprovadamente eficazes.>
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A ozonioterapia se baseia na aplicação de ozônio medicinal, uma mistura gasosa que envolve duas substâncias: oxigênio e, claro, o próprio ozônio. Esse produto foi descrito ainda no século 19, a partir do trabalho de químicos alemães, e as primeiras aplicações terapêuticas foram sugeridas no início do século 20. A ideia ganhou fôlego e passou a receber mais destaque a partir dos anos 1980.>
Em nota técnica publicada em 2022, a Anvisa destaca que o ozônio “é um gás com forte poder oxidante e bactericida”. O “bactericida” significa que ele é capaz de eliminar bactérias de uma determinada região ou superfície.>
Por conta dessas características, esse gás é comumente usado para desinfectar objetos e fazer o tratamento de reservatórios de água, como piscinas.>
No contexto de saúde, os defensores da prática apontam que o gás poderia ser aplicado diretamente no local afetado ou injetado em partes específicas do corpo, como músculos, articulações, corrente sanguínea ou pele. >
Há também quem defenda a ozonioterapia retal, em que um cateter é inserido pelo ânus e lança o gás diretamente na porção final do intestino.>
No mesmo parecer citado anteriormente, a Anvisa pontua que não há, “até o momento, nenhuma evidência científica significativa de que haja outras aplicações médicas para a utilização de tal substância nas modalidades de ozonioterapia aplicada em pacientes”.>
A agência aponta que as únicas indicações de uso da ozonioterapia “com segurança e eficácia” são na área da Odontologia, como parte do tratamento das cáries, da periodontite (inflamação grave da gengiva), de canais dentários e durante a recuperação de tecidos após cirurgias na boca.>
No campo da estética, a Anvisa também diz que esse gás pode auxiliar na limpeza e na assepsia (eliminação de bactérias) da pele. A Food and Drug Administration (FDA), a agência regulatória dos Estados Unidos, publicou em 2019 um parecer dizendo que “o ozônio é um gás tóxico sem nenhuma aplicação médica conhecida como terapia específica, adjuvante ou preventiva”.>
“Para o ozônio ser efetivo como um germicida, ele deve estar presente em uma concentração muito maior do que aquela que pode ser tolerada com segurança por seres humanos ou animais”, complementa o texto.>
A Cochrane Library, uma instituição internacional que realiza revisões de evidências sobre diferentes tratamentos, possui uma única avaliação sobre a ozonioterapia. Nela, os autores analisaram se a técnica poderia ser utilizada para tratar feridas e úlceras que aparecem nos pés de indivíduos com diabetes.>
A conclusão foi a de que não há trabalhos suficientes na área. “Com base na baixa e limitada qualidade de informações disponíveis, os revisores não são capazes de determinar a efetividade da ozonioterapia para tratar úlceras nos pés de pessoas com diabetes”, diz o texto.>
Para que a eficácia e a segurança do ozônio sejam conhecidas de fato, seria necessário que o tratamento fosse avaliado em testes clínicos, apontam entidades médicas. Neles, a terapia seria comparada com outras opções disponíveis ou com placebo (uma substância ou intervenção sem nenhum efeito).>
Os resultados do experimento seriam então publicados em revistas científicas, onde passariam por um processo de revisão e poderiam ser avaliados, replicados e criticados por especialistas independentes. Se as conclusões fossem positivas, as entidades médicas teriam mais recursos para indicar (ou não) a ozonioterapia como uma opção contra determinadas enfermidades.>
No entanto, entidades nacionais e internacionais apontam que todo esse processo ainda não ocorreu com a ozonioterapia — e que os estudos disponíveis não trazem conclusões suficientemente sólidas e convincentes.>
Em seu site oficial, numa página intitulada “A ozonioterapia é Indicada para que?”, a Associação Brasileira de Ozonioterapia (Aboz) alega que “existem diversos estudos científicos e evidências que reafirmam a segurança, efetividade e importância” da abordagem. No mesmo endereço online, porém, não são citadas indicações terapêuticas específicas, e não há links para pesquisas que corroborem a afirmação.>
Em nota oficial publicada em junho de 2022, a Aboz argumenta que a maioria “dos conselhos profissionais já possuem a terapia devidamente regulamentada, como é o caso da Odontologia, da Fisioterapia, da Enfermagem, da Farmácia, da Biomedicina, da Biologia e da Medicina Veterinária”.>
“A única exceção é a Medicina, pois o Conselho Federal de Medicina (CFM) ainda atribui à Ozonioterapia natureza experimental”, diz a nota. De fato, o uso médico da ozonioterapia tem gerado muitos debates e críticas no Brasil nos últimos anos.>
A Academia Nacional de Medicina, por exemplo, publicou uma carta aberta em 17 de julho pedindo que o presidente Lula vetasse o projeto de lei. A Associação Médica Brasileira (AMB) também se posicionou contra a ozonioterapia recentemente. >
A entidade lembrou de uma nota de repúdio publicada em dezembro de 2017 — ano de criação do projeto de lei no Senado Federal — assinada por 25 entidades médicas nacionais, como as sociedades e associações de Neurologia, Infectologia, Psiquiatria, Cancerologia, Pediatria, entre outras. “Não há na história da Medicina registro de droga ou procedimento contra um número tão amplo de doenças”, destaca o texto.>
A ozonioterapia é indicada — sem evidências, de acordo com a AMB — contra todos os tipos de diarreia, artrites, hepatites, hérnias de disco, doenças de origem infecciosa, inflamatória e isquêmica, autismo, sequelas de câncer e de Acidente Vascular Cerebral (AVC). “Autorizar a oferta da ozonioterapia sem a certeza de sua eficácia e segurança expõe os pacientes a riscos, como retardo do início de tratamentos eficazes, avanço de doenças e comprometimento da saúde.”>
Falando em riscos, a FDA reforça que o ozônio é tóxico se usado em altas concentrações. E isso, claro, pode provocar eventos adversos. Os mais comuns, ainda segundo a FDA, são irritação no local onde o gás foi aplicado. Mas a entidade também cita relatos de “efeitos fisiológicos indesejados no sistema nervoso central, no coração e na visão”. “A inalação de ozônio pode causar irritação dos pulmões e resultar num edema pulmonar”, acrescenta a agência regulatória americana.>
O Conselho Federal de Medicina (CFM) — o órgão responsável por regulamentar práticas médicas no país — também mostrou-se contrário à adoção da ozonioterapia pelos profissionais da área.>
A manifestação mais recente da entidade sobre o tema em seu site oficial é de agosto de 2020. Nela, o CFM destaca que a “ozonioterapia não é válida para nenhuma doença, inclusive a covid-19”.>
À época, defensores da técnica defendiam a aplicação do tal gás medicinal contra a infecção causada pelo coronavírus — a prática de aplicar o “ozônio retal” foi realizada em alguns hospitais particulares brasileiros, como documentado pela CPI da Covid.>
O então presidente do CFM, Mauro Ribeiro, explicou que “com base nos estudos mais recentes e conceituados, o uso da ozonioterapia no tratamento de doenças não oferece aos médicos e pacientes a certeza de que é um procedimento eficaz e seguro”.>
A aprovação da ozonioterapia via projeto de lei se assemelha ao que ocorreu com outro tratamento médico em 2016: a fosfoetanolamina, conhecida popularmente como a “pílula do câncer”.>
Sem nenhuma evidência de segurança e eficácia, a molécula foi objeto de um projeto de lei de autoria do então deputado federal e futuro presidente Jair Bolsonaro (PL). A meta era disponibilizar a substância aos pacientes com câncer, apesar da posição contrária de diversas entidades médicas e da falta de aprovação da Anvisa. A proposta foi aprovada no Congresso Nacional e acabou sancionada pela então presidente Dilma Rousseff (PT).>
Naquele mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a decisão sobre a liberação da fosfoetanolamina de forma liminar. Quatro anos depois, em 2020, a Corte derrubou de vez a lei ao julgá-la “inconstitucional”.>
Em reportagem publicada no dia 3 de agosto, a BBC News Brasil consultou a Anvisa sobre como seria a aplicação da lei. Segundo a resposta, não haveria mudança, na prática: na visão do órgão, os equipamentos de ozonioterapia autorizados pela Anvisa para uso odontológico e estético continuariam permitidos apenas para essa finalidade.>
“É importante esclarecer que as empresas que, porventura, ensejem a submissão de regularização de novos equipamentos emissores de ozônio com indicações de uso diferentes daquelas citadas na Nota Técnica Nº 43/2022 deverão apresentar estudos clínicos com resultados eficazes e seguros a fim de corroborá-las, conforme disposto na RDC nº 546/2021 e, quando aplicável, na RDC nº 548/2021”, disse a Anvisa.>
“Assim, somente depois de aprovados junto à Anvisa é que os equipamentos poderão ser utilizados para outras finalidades”, reforçou o órgão.>
Já o advogado e sanitarista Silvio Guidi disse à BBC News Brasil ter leitura diferente. No seu entendimento, a lei dá abertura para que profissionais de saúde usem os equipamentos já aprovados pela Anvisa em outros tipos de tratamento complementar. A expectativa de Guidi, porém, é que a lei não será aplicada. O advogado acredita que a lei tende a ser considerada inconstitucional pelo STF, da mesma forma que ocorreu no caso da fosfoetanolamina em 2020.>
Para Guidi, apenas o CFM e a Anvisa poderiam ampliar os usos da ozonioterapia no país. >
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