• Joana Pellerano

    Joana Pellerano é professora e pesquisadora dos estudos da alimentação. Aqui, serve contos e crônicas para acompanhar bolo com café (ou a dupla favorita do seu estômago).

Ode a uma receita cansada como nós

Publicado em 29/06/2023 às 04h00

Acontece com todo mundo: um dia descobrimos que quem achamos velho e cansado um dia já foi jovem e descolado.

Sabemos, racionalmente, que essas pessoas não nasceram com a idade e as responsabilidades de hoje, mas é surpreendente calcular o peso disso.

Leveza e espontaneidade são fáceis aos 18, antes dos boletos, dos filhos, da chefia pegando no pé, quando não temos aquele cansaço que pede um dia extra antes de começar tudo de novo na segunda. E um dia a gente sente isso na pele.

Pois a comida, pasme, também tem dessas. E aposto que, caso pudesse, também olharia para sua trajetória e perguntaria “como eu vim parar aqui?”.

Considere, por exemplo, o estrogonofe. Dizem que nasceu rico e russo e ganhou muitas versões mundo afora, inclusive a nossa.

A carne bovina, mais próxima da receita original, é frita aos poucos, polvilhada com farinha de trigo e vai encontrar um molho temperado e creme de leite, arrozinho branco e batata palha. Nada mais conforto, mais afeto. Mas não foi sempre assim.

Há umas cinco décadas, estrogonofe era pura elite. Era comida de casamento, de jantar luxuoso, pra impressionar.

Estrogonofe strogonoff

Dizem que o estrogonofe nasceu rico e russo e ganhou muitas versões mundo afora. Crédito: Shutterstock

Mas lá pelo fim dos anos 1990, esse status começou a ficar grisalho. Lembro de ouvir, estarrecida, uma colega de trabalho criticar um cardápio porque incluía “esse prato cansado”. 

E como esquecer da personagem da novela das oito - na época, o fuso horário das novelas era diferente - taxando-o de “comida de pobre”?

O estrogonofe viu sua juventude sair dos planos para a próxima festa e desembocar nas memórias da última. Ao olhar no espelho metafórico da vida, o estrogonofe não via o passar dos anos, porém seu joelho metafórico sentiu o peso da maturidade.

Mas a grande reviravolta é que esse senhor cavou a melhor das sobrevidas: sem as pressões da juventude, sem a competição com pratos mais novos, mais moderninhos, mais instagramáveis. Tornou-se a melhor versão de si mesmo, acessível, reconfortante, estável.

Fiquemos aqui com essa lição. Como os ciclos da vida são inevitáveis, sejamos todos um pouco estrogonofe. E, nesse inverno que chega, esquentemos nossos joelhos (não os metafóricos, mas os reais) com um prato quentinho caprichado na batata palha.

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