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Violência provocada pelo crack desafia as autoridades no Estado

Violência provocada pelo crack desafia as autoridades no Estado

Morte de empresária trouxe à tona problema que ninguém assume

Publicado em 8 de maio de 2018 às 00:57

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Simone foi morta na Praia da Costa por Felipe. Ele é usuário de drogas e morador de rua, como vários na Praia do Suá. (Fernando Madeira)

É muito difícil circular pelas ruas da Grande Vitória sem se deparar, ao menos uma vez, com usuários de drogas pelas esquinas, nas praças, sob marquises de lojas. Alguns ficam em seus grupos, fumando crack, enquanto outros se mostram mais agressivos. A violência dos viciados é um desafio para as autoridades e, ao mesmo tempo, um problema sem dono. Quem vai resolver isso?

A pergunta, que é de toda a sociedade, se torna ainda mais necessária após o assassinato da empresária Simone Venturin Tonani, 42, na última sexta-feira, que foi atingida por um vergalhão arremessado a ermo por Felipe Rodrigues Gonçalves, usuário de drogas que vivia nas ruas da Praia da Costa, Vila Velha.

Para sustentar o vício, muitos usuários cometem crimes, como arrombamentos e furtos. Mas por serem considerados como delitos de menor poder ofensivo, mesmo quando o acusado é detido ele não fica muito tempo na prisão. Foi o que aconteceu com Felipe: desde dezembro, havia sido autuado seis vezes e solto, até que matou Simone.

Enquanto não há mudança na legislação penal, há outra lei que prevê internação involuntária e compulsória de dependentes químicos, contradizendo prefeituras que afirmam que não podem obrigar ninguém a passar por tratamento. Mas o caminho até a internação deve ser precedido de um trabalho de atenção básica em saúde e assistência social para esgotar todas as possibilidades.

“As pessoas que fazem abordagem social têm conhecimento para lidar com os dependentes e sabem como agir; têm que ter o tato. Se eles não procuram um serviço sozinhos, muitas vezes é porque não conseguem. Então, tem que haver esse trabalho das prefeituras. Caso a pessoa esteja surtando, sem condições de avaliar o que é melhor para ela, o Samu precisa ser acionado para o atendimento em saúde”, ressalta Gabriela Larrosa de Oliveira, do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública.

Após receber os primeiros atendimentos médicos e conseguir recuperar um pouco da lucidez, esse dependente, segundo Gabriela, deve novamente passar por atendimento da prefeitura para ser submetido a um tratamento de mais longo prazo. Se for o caso de internação, porém, há um déficit de leitos na rede pública estadual para a demanda.

AGRESSIVIDADE

E o crime da Praia da Costa dá indícios de que essa rede de assistência não tem sido mesmo efetiva. Conhecido há anos pela agressividade, Felipe Gonçalves costumava atirar pedras contra as pessoas e os carros que circulavam na Praia da Costa, segundo o presidente da Associação de Moradores do bairro, Gilson Pacheco.

“Esse prende e solta aconteceu até ele cometer uma barbaridade, na última sexta. E o direito de ir e vir, previsto na Constituição, das pessoas que estão sendo agredidas na rua? As autoridades de segurança precisam tomar uma providência urgente”, convoca.

Na avaliação de Pacheco, o poder público não deveria permitir que pessoas agressivas permanecessem em situação de rua, pois os moradores da região tornam-se vulneráveis a ameaças e agressões físicas.

Mas a Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) afirmou, por meio da assessoria, que não é atribuição da polícia retirar usuários de drogas das ruas, a não ser que cometam crimes. Agora Felipe está preso.

MORADORES TÊM MEDO DE AGRESSÕES 

Casa onde se abrigava Felipe Rodrigues Gonçalves, que jogou vergalhão na cabeça de empresária, na Praia da Costa. Local está abandonado. (Ricardo Medeiros)

A presença dos usuários de drogas que vivem nas ruas da Praia da Costa, em Vila Velha, é comum, segundo moradores e pessoas que trabalham no bairro. A situação se repete em outros locais da Grande Vitória. Nem todos são considerados uma ameaça, mas aqueles que demonstram um comportamento agressivo despertam um sentimento que predomina: o medo.

Assustado com o caso da empresária Simone Venturin Tonani, que foi atingida por um vergalhão arremessado por um morador de rua da Praia da Costa na última sexta-feira, o estudante Augusto Cesar Daleprane, 19, morador do bairro, lembrou de quando foi perseguido por um homem que aparentava viver na rua.

“Ele estava sujo e tinha barba grande, sentado na calçada de uma rua. Quando eu passei, ele levantou e veio na minha direção. Eu comecei a correr e ele correu atrás de mim. A sorte é que eu estava perto de casa e consegui entrar na portaria.”

Augusto mora a poucos metros de distância de onde Felipe Rodrigues Gonçalves, que arremessou um vergalhão contra Simone, se abrigava. O imóvel, que é particular, está abandonado e completamente aberto. O local está infestado de ratos, cheio de lixo, rachaduras e infiltrações. O mau cheiro é tão forte que moradores precisam prender a respiração para andar na calçada.

O presidente da Associação de Moradores da Praia da Costa, Gilson Pacheco, explicou que o problema da casa abandonada já foi denunciado à prefeitura pela comunidade há um ano. A administração municipal informou ontem que notificou e multou o proprietário do imóvel.

ESTRATÉGIAS

A advogada Amanda Altoé Filgueiras, 24, trabalha na Praia da Costa e procura ter alguns cuidados para evitar o pior. Ela estaciona o carro em uma rua sem saída, que tem um prédio que possui portaria e câmeras de segurança. Caso precise resolver alguma tarefa a pé, nem cogita levar o aparelho celular. Já a aposentada Alcione Melo, 68, que anda bastante por Vila Velha, comentou que procura se afastar e trocar de calçada quando vê alguém suspeito.

OUTROS BAIRROS

O cenário de moradores de rua que são usuários de droga também é encontrado em outros bairros da Grande Vitória. No Centro da Capital, por exemplo, eles se concentram na Praça Costa Pereira e na Praça Ubaldo Ramalhete. Segundo o presidente da Associação de Moradores, Everton Brito, o uso de drogas acontece nesses locais durante o dia todo.

Já na Praia do Canto, o presidente da Associação de Moradores, César Saade, acredita que as pessoas acabam contribuindo para que essas pessoas permaneçam em situação de rua quando dão esmolas. Segundo ele, a Associação vai fazer uma campanha de ajuda às instituições que se comprometem em ressocialização dos moradores de rua.

A Praça Jacob Suaid, na Mata da Praia, é outro lugar onde os moradores de rua se concentram. Na avaliação do presidente da Associação de Moradores, Paulo Vitor Dal’Col, é um problema crônico. “Desde dezembro aumentou bastante o número de moradores de rua não só no bairro, como no entorno. Eles dormem na praça e saem durante o dia.”

Já em Jardim da Penha, também em Vitória, eles se reúnem em pracinhas.

ONDE VIVEM OS USUÁRIOS DE DROGAS NAS RUAS

VILA VELHA

Praia da Costa

- Embaixo da Terceira Ponte

- Em marquises de lojas

VITÓRIA

Centro

- Praça Costa Pereira

- Praça Ubaldo Ramalhete Maia

Praia da Costa

- Embaixo da Ponte Ayrton Senna

- No final da Rua Joaquim Lyrio, atrás de um supermercado

- Nas marquises das lojas

Mata da Praia

- Praça Jacob Suaid

Jardim da Penha

- Embaixo da Ponte da Passagem

- Praça Wolghano Netto, conhecida, onde há um supermercado.

- Praça Regina Frigeri Furno, onde há outro supermercado.

Fonte: associações de moradores

INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA PARA OS CASOS DE RISCO

Embora prevista em lei, a internação compulsória para dependentes químicos não é assunto pacificado entre especialistas. Para muitos, a medida só deve ser adotada em situações excepcionais em que o usuário de drogas ofereça risco para si mesmo ou outras pessoas.

Homem acende cachimbo de crack: ao voltar para as ruas, sem suporte, usuários de drogas não conseguem dar continuidade a tratamento. (Carlos Alberto Silva)

A defensora pública Gabriela Larrosa de Oliveira, membro do Núcleo de Direitos Humanos, observa que a internação deve ser o último recurso quando outras ações já foram implementadas e não surtiram efeito.

“Ainda que haja previsão legal, não acreditamos na efetividade dessa medida como forma de colaborar com a saúde mental da pessoa”, opina.

Gabriela pondera que as pessoas em situação de rua e dependentes químicas possuem diversas peculiaridades, provavelmente com o vínculo familiar rompido, e institucionalizar o transtorno delas não dá a solução para quando deixam a internação.

“Como não têm apoio da família, nem do Estado, voltam para as ruas e não conseguem ficar longe do vício. Já acompanhamos pessoas que ficaram internadas compulsoriamente e, por não terem esse suporte, não conseguiram dar continuidade a qualquer tipo de tratamento”, ressalta.

Opinião semelhante tem Elda Bussinguer, doutora em Bioética e coordenadora do Doutorado em Direito da FDV. “A pessoa deve ser internada em último caso, quando representa um risco para ela, para a família ou para a sociedade. Quando houver o risco de matar ou morrer.”

Para Elda, essas pessoas estão abandonadas pelo Estado e muitas vezes pela própria família. “É preciso ações integradas, políticas públicas inclusivas. Elas são sujeitos de direito. Hoje, o que temos para elas é a prisão ou a internação. Não podemos trancafiar todos os moradores de rua em uma instituição. A internação não é pra sempre. Se não houver mudança, quando sair, ele vai encontrar os mesmos problemas”, acrescenta.

O médico João Chequer, especialista em dependência química, também discorda da política de internação compulsória para todo mundo. Em sua opinião, o problema dos usuários de drogas é complexo e, antes de tudo, é preciso investimento em educação e prevenir o consumo.

1.300 PEDIDOS PARA INTERNAR E SÓ 112 LEITOS NA REDE ESTADUAL

Com poucos leitos disponíveis e muita demanda, a internação de dependentes químicos ficou nas mãos da Justiça. Segundo a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), em 2017, foram cumpridos 1.321 mandados judiciais para a internação de pessoas dependentes de drogas.

Como não há vaga disponível nem para todos os pedidos feitos, os demais são alocados em leitos particulares, pagos pelo Estado. No mesmo período, foram gastos R$ 26,8 milhões em internações.

Somadas, as redes estadual e filantrópica contam com 112 leitos para internações dessa natureza, 60 na Grande Vitória e o restante no interior.

Esses leitos, segundo a Sesa, atendem internações de curta permanência, ou seja, de dois a três meses, isso quando o quadro do paciente é grave.

SURTO

São pacientes em surto, seja por descompensação do quadro psiquiátrico ou por crise de abstinência por uso abusivo de álcool ou outras drogas.

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Após estabilizar o paciente, ele é mandado de volta para o seu ambiente.

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