Publicado em 5 de junho de 2022 às 09:33
Com o fim do seu casamento de 20 anos, a administradora de empresas Aline Fernandes dos Santos, 41, criou um perfil em aplicativos de namoro, o caminho quase natural de um solteiro em São Paulo.>
Teve alguns encontros pouco animadores até dar match com Jack, um britânico atraente de 33 anos a 1 quilômetro de distância dela. "Sou de Londres, homem de negócios e investidor" dizia sua biografia no aplicativo.>
Eles começaram a trocar mensagens em 11 de março. Ela jamais imaginou que, um mês depois, o flerte resultaria em um prejuízo de cerca de R$ 600 mil. "É a economia de toda a minha vida, mais as dívidas que acabei fazendo", diz.>
O perfil de Jack estava ativo no aplicativo até 24 de abril. Para ele, a plataforma era uma isca para conquistar a confiança das pessoas.>
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Aline recebia mensagens como "chegou bem em casa?", "tenha um bom dia de trabalho" e "você é a primeira pessoa que converso no Brasil".>
"É uma amarração, vai envolvendo você. Aí tem um momento em que ele fala do trabalho dele, que ele é muito apaixonado e dedicado", conta.>
Jack dizia trabalhar com investimento em criptomoedas. Contava ter uma empresa e que estava no Brasil para cuidar de um tio doente, com idade avançada e em processo de demência - o que ele usa como justificativa para não marcar encontros. Aline até tentou conhecê-lo por vídeo, mas o tio também foi usado como desculpa.>
No primeiro dia, a conversa em inglês já migrou para o WhatsApp. O código de área dele era 44, do Reino Unido.>
No segundo dia, ele deu um jeito de introduzir o assunto principal. Disse "o mercado hoje está agitado", para falar sobre criptomoedas. Enviou uma foto com sua suposta mesa de trabalho, que tem um computador com a tela cheia de gráficos de ações. Foi o gancho para a pergunta que mudou tudo na vida de Aline: "Você entende de investimento?".>
Ela, que até então só investia em ativos de baixo risco, respondeu que não, mas se mostrou aberta a aprender. "Eu tinha curiosidade, mas não sabia operar ações, quanto mais criptomoedas. Ele explicou como funcionava e disse que me ensinaria se eu quisesse. Aí as explicações vieram corretas, eu chequei, e decidi fazer um aporte." Não contou para ninguém.>
Essas explicações eram conceitos sobre criptomoedas e o funcionamento do mercado - algumas copiadas na íntegra de sites de corretoras. Dois especialistas em criptoativos ouvidos pela Folha analisaram essas mensagens e afirmaram que as informações eram coerentes.>
Embora sem trabalho havia alguns meses, Aline tinha segurança financeira. O dinheiro que perdeu veio da venda de metade do apartamento que dividia com o ex-marido e de outros bens.>
A primeira aplicação foi de US$ 1.000 (R$ 4.700 na atual cotação) em uma corretora internacional certificada, a Crypto.com, cujo garoto-propaganda é o ator Matt Damon.>
"É aí que está o pulo do gato, ele te ensina a investir numa corretora idônea, que existe, e não pede seus dados, sua senha, ele só vai orientando." Ela enviava prints da tela do celular e ele os devolvia sinalizando onde ela deveria clicar.>
Uma hipótese entre analistas é que esse site tenha sido usado pelo golpista apenas para converter os dólares em criptomoeda.>
O dinheiro rendeu, Aline se animou, e Jack então sugeriu que ela transferisse tudo para uma corretora que "valia mais a pena". Noutra frente da relação virtual, ele começou a dizer que queria se estabelecer no Brasil e que estava interessado em uma relação mais séria.>
Aline passou a quantia para uma corretora chamada BTX Exchange. Dessa vez, não checou a procedência na internet. Segundo o site Scamosafe, que detecta a veracidade de alguns sites de investimento, trata-se de uma corretora fraudulenta, que oferece "investimento com moedas fictícias" e não tem nenhuma empresa associada a ela, de acordo com um relatório.>
A Folha entrou em contato com a BTX Exchange por email, mas não obteve resposta. Não há número de telefone e nem localização da empresa no site. Na internet, há mais três relatos de pessoas que também não conseguiram resgatar a aplicação nessa plataforma.>
"Uma hipótese é que o fraudador tenha criado uma exchange [que é a BTX], com regras de negócio próprias, usando vários recursos de código aberto disponíveis no mercado e que isso seja uma quadrilha internacional. As vítimas conseguem entrar com recursos, mas não conseguem mais tirar dinheiro de lá", diz Courtnay Guimarães, cientista-chefe de blockchain na empresa de tecnologia Avanade, que trabalha há oito anos no mercado de criptomoedas e há mais de 30 anos com criptografia.>
Quando o investimento chegou a cerca de US$ 47 mil (dos cerca de US$ 89 mil aplicados, equivalente a R$ 425 mil), Aline quis resgatá-lo.>
"Ele some por dois dias e depois reaparece no celular, feliz, bem feliz, muito empolgado. Diz que levou o tio embora para a Inglaterra, que os parentes de lá vão cuidar dele e que gostaria de me conhecer. Logo depois, manda mensagem dizendo que caiu na triagem [de Covid] do aeroporto e que vai ficar de quarentena.">
Nesse momento, Aline começou a ficar nervosa porque ele ficava indisponível e ela não conseguia fazer o resgate sozinha pelo aplicativo. Jack mostrou-se triste por não poder ajudá-la --mais uma manipulação emocional. Ao entrar em contato com o atendimento ao cliente, a corretora disse que tinha taxas e impostos a serem pagos.>
"Cada vez que eu conseguia pagar uma taxa nova, e eram muito altas, tipo R$ 30 mil, R$ 45 mil, chegava outra. Aí tinha a lista de espera, se eu quisesse passar na frente, tinha que pagar mais uma taxa." Nada disso havia sido dito por Jack.>
Ao todo, foram exigidos 37.568 USDT (sigla para tether, uma moeda digital atrelada ao dólar) em taxas e impostos, quase R$ 180 mil. Para conseguir reaver seu dinheiro, Aline começou a pedir novos cartões de crédito no mercado. Para pagar as faturas, começou a fazer novas dívidas.>
Enquanto isso, a relação virtual começou a ruir. "Ele provocou uma discussão sem sentido, dizendo que estava naquela situação de suposta fragilidade, de quarentena, que eu não confiava nele, e me bloqueou.">
A ficha de Aline caiu. Uma amiga sua que entende do setor leu todo o histórico de mensagens e concluiu que era atípico ela não conseguir descongelar seu próprio dinheiro. Quando as duas entram em contato com o setor de atendimento ao cliente, Jack imediatamente desbloqueou Aline do WhatsApp.>
Jack passou a ser evasivo nas respostas. Restou, ao fim, três caminhos para Aline: fazer mais um depósito, dessa vez equivalente a R$ 10 mil, e sacar o dinheiro; fazer o depósito e não conseguir sacar o dinheiro; procurar ajuda na polícia.>
Aline foi acolhida na delegacia de crimes cibernéticos, no centro de São Paulo. Registrou boletim de ocorrência, mas o escrivão disse tratar-se de um golpe e levantou a hipótese de aquele dinheiro já estar a léguas de distância, sendo quase impossível rastreá-lo. Sem muita esperança, ela ainda poderia abrir um inquérito para que o caso fosse investigado, explicou.>
Para o delegado Thiago Cirino Chinellato, da divisão de Crimes Cibernéticos da Polícia Civil de São Paulo, golpes aplicados em apps de paquera têm alguns padrões: a pessoa normalmente diz não morar no Brasil, rouba fotos de outros na internet (o que é crime de falsidade) e em pouco tempo fala sobre dinheiro.>
"O link que ela clicou ao baixar o app da BTX também pode ser uma carteira de criptomoeda dele, que ele transformou numa carteira fria [como se tirasse do sistema blockchain e colocasse num dispositivo físico], tornando muito difícil de rastrear", diz.>
Golpes envolvendo criptomoedas em aplicativos de namoro são chamados de criptorom (fusão de cripto e romance). No Brasil, a polícia já configura esse tipo de crime como "golpe do amor".>
O caso levou Aline a um trauma, que vem sendo tratado. Está concentrada em buscar recolocação profissional e quitar as dívidas com os bancos. Ela vive com ajuda dos irmãos até conseguir um novo posto.>
A partir de uma pesquisa pelo Google Lens, é possível encontrar o dono da foto que Jack usava no Tinder.>
Trata-se de Thiago Lazzarato, 37 anos, brasileiro, morador de Londres. Por mensagem em uma rede social, disse à Folha que outras pessoas já haviam o alertado que perfis estavam usando suas fotos no Tinder. "Eu não moro no Brasil há 17 anos. Nem sei como fazer B.O. aí.">
Aline mostrou à reportagem outras mensagens que trocou com um francês chamado Thomas.>
"Eu vim aqui principalmente para examinar o mercado e visitar meu tio. Eu sou um empresário e um investidor, eu investir (sic) principalmente em imóveis com criptomoedas.">
Dessa vez, Aline já estava vacinada.>
Em nota, o Tinder diz lamentar o caso e ter uma política de tolerância zero para esse tipo de comportamento.>
"Investimos constantemente em maneiras de manter os membros seguros enquanto usam o Tinder, incluindo um conjunto robusto de recursos de segurança e educação de segurança no aplicativo, tecnologia de detecção de fraudes e trabalho direto com aplicação da lei quando necessário.">
"Incentivamos os membros a denunciar qualquer comportamento suspeito diretamente para nós, para que possamos identificar, parar e remover criminosos antes que alguém seja prejudicado.">
A empresa recomenda aos usuários que procurem perfis verificados.>
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