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Furo no teto por eleição não garante nem comida para mais pobres

Furo no teto por eleição não garante nem comida para mais pobres

Após não dar nenhum reajuste ao Bolsa Família, Bolsonaro busca dar Auxílio Brasil, com benefício insuficiente para a compra de uma cesta básica mensal

Publicado em 26 de outubro de 2021 às 18:56

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Cartão do Bolsa Família
Cartão do Bolsa Família. (Agência Brasil)

Tratada no governo como a boia salva-vidas para a tentativa de reeleição de Jair Bolsonaro, o programa que vai substituir Bolsa Família nasce com um valor nominal de mais que o dobro do atual, mas a corrosão da inflação e os anos sem reajuste mantêm o benefício insuficiente para a compra de uma cesta básica mensal.

A ideia do governo é que o Auxílio Brasil, aposta de Bolsonaro para atrair voto do eleitorado de baixa renda, seja de ao menos R$ 400 de novembro deste ano até dezembro de 2022. Após isso, não há garantia de que esse valor será mantido.

De acordo com o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), uma cesta básica individual mensal com treze grupos alimentares custava em média R$ 497 em sete capitais do Norte e Nordeste (Belém, Aracaju, Fortaleza, João Pessoa, Natal, Recife e Salvador), em setembro.

Ou seja, ainda a depender da variação inflacionária de outubro, o valor que será pago para a maioria das famílias no Auxílio Brasil representará cerca de 80% do valor da cesta básica necessária para alimentação saudável de um adulto, nessas capitais.

Em uma casa com dois adultos e duas crianças, por exemplo, seria necessário cerca de R$ 1.500 (o Dieese considera meia cesta por criança).

A análise do benefício desde 2004 "quando o programa foi criado" até agora mostra que o valor médio nunca foi suficiente para a compra de todos os itens da cesta calculada pelo Dieese.

A média do governo Lula (2003-2010) foi de 47% de uma cesta. Dilma Rousseff (2011-2016), 55%, Michel Temer (2016-2018), 50%, e Bolsonaro, 47% (excluídos os meses de pagamento do Auxílio Emergencial).

Embora tenha havido reajustes em anos eleitorais no passado, o aumento pretendido por Bolsonaro a partir de novembro é o maior deles e tem prazo para acabar em dezembro de 2022, ou seja, dois meses após a disputa em que o presidente deve tentar a reeleição.

Hoje, o benefício médio concedido pelo Bolsa Família gira em torno de R$ 190 e atende a cerca de 14 milhões de famílias. Além do aumento, a ideia do governo é que o Auxílio Brasil alcance quase 17 milhões de famílias.

A fonte dos recursos para financiar o pagamento não foi anunciada, nem qual o valor que cada família beneficiada vai receber a partir de janeiro de 2023 em tese, elas voltarão para o valor fixo, que deve ir para algo em torno de R$ 220, segundo o governo.

O Bolsa Família não é reajustado desde julho de 2018, quando a gestão Temer concedeu aumento médio de 5,67%, na véspera do Dia do Trabalho.

A inflação acumulada a partir de então, de julho de 2018 até setembro deste ano (INPC), foi de 19,1%.

O programa tinha sofrido correções durante os governos dos petistas Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Bolsonaro sempre criticou o Bolsa Família em seus tempos de deputado federal. Na época, ele afirmava que programas como Bolsa Escola e Bolsa Família serviriam apenas para incentivar os pobres a ter mais filhos e, com isso, aumentar a fatia que recebem de benefícios.

"Só tem uma utilidade o pobre no nosso país: votar. Título de eleitor na mão e diploma de burro no bolso, para votar no governo que está aí. Só para isso e mais nada serve, então, essa nefasta política de bolsas do governo", afirmou em novembro de 2013 no plenário da Câmara.

Já durante a corrida presidencial, mudou o discurso. Em 2019, pagou um 13º salário aos beneficiários, promessa de campanha. Na prática, isso levou a um ganho real de 3,6% naquele ano.

A socióloga Letícia Bartholo, especialista em políticas públicas e gestão governamental e ex-secretária nacional adjunta de Renda de Cidadania (2012-2016), afirma que o jeito com que o governo trabalhou a questão transmite à população uma situação de "insegurança de renda".

"A cada dia o benefício tem um valor, a gente não sabe por que R$ 400, porque não foram apresentados estudos de impacto sobre a pobreza e desigualdade, nem estudo sobre impacto orçamentário. A sensação que pode estar sendo transmitida para a população é de insegurança de renda. Você não sabe quando vai poder contar com esse benefício ou não, e qual o valor ele terá", diz.

Ela afirma ser difícil disfarçar a motivação eleitoral da ampliação temporária do programa.

"A impressão é de quase estar brincando com a pobreza, como se fosse um leilão. Não importa a segurança de renda das famílias, importa a minha motivação eleitoral. Vai ser um grande susto para as famílias mais pobres [caso haja a redução em 2023], com impactos claros na alimentação delas, no bem-estar dessas famílias."

Desde o início do programa, o benefício teve, até março deste ano (último mês sem pagamento de auxílio emergencial), correção de 156%, índice similar ao do INPC (153%). Já a cesta básica medida pelo Dieese nas capitais do Norte e Nordeste subiu muito mais, 243%.

A economista Patrícia Costa, supervisora das pesquisas de preço do departamento intersindical, afirma que embora seja positivo o aumento do benefício em um período de pandemia e desemprego alto, é preciso que a inflação de alimentos seja controlada e a economia melhore, para que o reajuste não tenha efeitos efêmeros.

"Há um número expressivo de pessoas que vai ficar de fora disso [do novo Bolsa Família] e também é preciso resolver a questão da crescente inflação de alimentos, do gás, da energia. Se vier só o auxílio, ele rapidamente ele vai ser comido pela inflação e você não vai resolver o problema das pessoas, que vão continuar com fome, sem emprego e sem perspectiva."

Para o economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social, a perda do poder de compra causada pela inflação se associa à volatilidade do valor transferido às famílias pobres.

"Quando você introduziu o auxílio emergencial generoso e depois reduziu o auxílio emergencial, e suspendeu em certo momento, coisa que pode acabar acontecendo no mês que vem, você cria uma volatilidade. Vai ter meses em que a família vai ter muito pouco, e meses em que vai ter mais. E esses meses tendem a ser próximos do calendário eleitoral", afirma.

Além do caráter eleitoreiro nas discussões feitas pelo governo, Neri ressalta ainda a maior carestia na cesta de consumo das pessoas mais pobres.

"Os itens da cesta de consumo dos pobres, e aí levando em conta não só alimentação, mas todas as despesas, o botijão etc,, estão seis pontos percentuais acima [do benefício de 2014], o que é muito. É ruim no sentido ético da palavra, porque é um truque que você faz para ludibriar as pessoas. Dou um reajuste em ano de eleição, depois não. Queda de renda nominal é uma coisa rara, principalmente quando a inflação está alta, e no fundo é isso que está sendo proposto [a partir de 2023]."

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