Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

"O Telefone do Sr. Harrigan", da Netflix, é boa adaptação de terror

"O Telefone do Sr. Harrigan" adapta com fidelidade conto de Stephen King. Filme é uma história de fantasmas com boas doses de realidade

Vitória
Publicado em 05/10/2022 às 13h56
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Filme "O Telefone do Sr. Harrigan", adaptação do conto de Stephen King para a Netflix. Crédito: Nicole Rivelli/Netflix

Stephen King já vendeu quase 400 milhões de livros mundo afora. Desde seu primeiro livro, “Carrie, A Estranha” (1974), o escritor americano viu seu nome se tornar sinônimo de obras de horror, mas seu verdadeiro talento sempre foi na construção de personagens. King fazia com que seus leitores se importassem com os personagens de suas obras para despertar neles o medo do que poderia acontecer. Assim, não surpreende que alguns de seus melhores trabalhos não sejam necessariamente textos de terror, mas obras sobre relações humanas que podem ou não ter algo de sobrenatural, como “Conta Comigo” ou “Um Sonho de Liberdade”.

“O Telefone do Sr. Harrigan”, lançado pela Netflix, é um filme que capta o espírito do texto original de King. O roteiro se baseia em um conto lançado em 2020 para contar a história de Craig (Jaeden Martell, de “It - A Coisa”, outra adaptação de King), um jovem que vive com o pai (Joe Tippett) e descola um emprego lendo livros em voz alta para um bilionário idoso John Harrigan (Donald Sutherland).

O filme tem início em 2003, mas logo dá um salto temporal de quatro anos para encontrar Craig obcecado com o recém-lançado iPhone, uma febre na escola. O salto temporal serve também para trazer a amizade entre Craig e Harrigan, que, ao longo de quatro anos, se encontraram várias vezes na semana para conversar sobre livros e outras coisas. Quando finalmente consegue seu iPhone, Craig decide também comprar um para Harrigan, que logo supera sua aversão a tecnologia quando percebe as facilidades que o smartphone lhe oferecia.

O breve mergulho do personagem de Donald Sutherland no smartphone já traz questionamentos com os quais lidaríamos cerca de uma década depois. O que parece um detalhe e até um exagero ajuda a construir a persona visionária, o homem de negócios, o bilionário John Harrigan.

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Filme "O Telefone do Sr. Harrigan", adaptação do conto de Stephen King para a Netflix. Crédito: Nicole Rivelli/Netflix

À chegada da inevitável morte do amigo, Craig dá um jeito de enterrá-lo com seu agora inseparável aparelho, e é aí que as coisas ficam estranhas, pois o jovem passa a receber mensagens estranhas do número de Harrigan. “O Telefone do Sr. Harrigan” se transforma a partir deste ponto, de uma afetiva jornada de amizade improvável para uma história de fantasmas. 

Superando o luto, Craig se encontra na escola, com um grupo de amigos e um interesse amoroso, mas também enfrenta problemas com um valentão. Para piorar, era justamente com Harrigan que ele falaria sobre esse assunto - o amigo era um empresário implacável e nunca deixava ninguém tirar proveito dele. Craig, num gesto quase afetivo, resolve ligar para o saudoso amigo após uma confusão e revelar seus desejos mais profundos. O problema é que esses desejos passam a se tornar reais. Quem estaria por trás disso? Estaria alguém com o telefone de Harrigan ou o sobrenatural está em ação?

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Filme "O Telefone do Sr. Harrigan", adaptação do conto de Stephen King para a Netflix. Crédito: Nicole Rivelli/Netflix

Dirigido por John Lee Hancock (“Um Sonho Possível”), “O Telefone do Sr. Harrigan” é ótimo ao construir a relação entre os personagens em seu primeiro arco. Tal qual o texto de King, o filme não aposta no terror convencional, mas desperta um sentimento quase de culpa acerca do que se deseja - o desejo é algo tratado desde o prólogo do filme, com trechos de livros e memórias do jovem. Ainda, tudo no filme funciona quase como uma carta de amor de Stephen King à literatura e à maneira como os clássicos literários ajudam a entender/explicar o mundo.

O filme constrói a bem a tensão ao transformar as mensagens no telefone um objeto de terror, pois Craig e o espectador nunca sabem exatamente o que esperar delas. Toda essa construção, no entanto, pode ser um desperdício - fiel ao material original, o final do filme não funciona. “O Telefone do Sr. Harrigan” parece incompleto e passa sua mensagem, mas o repentino encerramento destoa da cadência estabelecida pelo filme até aquele momento. Stephen King, é bom ressaltar, conviveu a carreira toda com a crítica de que era muito melhor no desenvolvimento do que no encerramento de suas obras.

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Filme "O Telefone do Sr. Harrigan", adaptação do conto de Stephen King para a Netflix. Crédito: Nicole Rivelli/Netflix

O texto também sente falta de uma ambiguidade mais forte em Craig, que deveria estar mais presente naquela “área cinza” entre bem e o mal que torna os personagens ainda mais reais e assustadores. O personagem de Jaeden Martell é bonzinho demais para nos fazer questionar a natureza de seus desejos.

“O Telefone do Sr. Harrigan” não é um terror convencional, com poucos sustos e utilizando o sobrenatural como uma possibilidade que não necessariamente representa uma ameaça. O texto, porém, se relaciona com o mundo real, com a obsessão pelos smartphones e a ansiedade pelas notificações. Mesmo que em um primeiro momento o questionamento soe um pouco como a visão de alguém mais velho, é interessante o olhar de Stephen King sobre o tema.

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Filme "O Telefone do Sr. Harrigan", adaptação do conto de Stephen King para a Netflix. Crédito: Nicole Rivelli/Netflix

Com pouco mais de 100 minutos, “O Telefone do Sr. Harrigan” tem a duração ideal para adaptar um conto curto. O filme talvez não seja exatamente o que se espera de uma adaptação de Stephen King, mas tem a assinatura do autor na maneira como seus personagens e suas relações são construídos. O filme de John Lee Hancock é uma das mais fiéis adaptações de King, nas qualidades e nos defeitos.

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