É engenheiro de produção, cronista e colhereiro. Neste espaço, sempre às sextas-feiras, crônicas sobre a cidade e a vida em família têm destaque, assim como um olhar sobre os acontecimentos do país

Aurora Gordon na Ponte da Passagem 'me fez lembrar de letras marcantes'

Arranjos são os originais, os músicos são outros, mas o cantor é uma cópia fiel do pai que, sentado ao meu lado, ia assistindo um trecho da sua vida passar no compasso das suas criações

Publicado em 29/11/2024 às 03h05

Ontem fomos ao Sesc Glória assistir ao show do Aurora Gordon “Afonso Abreu - Na Ponte da Passagem”, uma homenagem que o produtor musical Murilo Abreu idealizou para comemorar os 50 anos que já se passaram desde a primeira versão do espetáculo no Teatro Carlos Gomes.

Os arranjos são os originais, os músicos são outros, mas o cantor é uma cópia fiel do pai que, sentado ao meu lado, ia assistindo um trecho da sua vida passar no compasso das suas criações, poéticas e inovadoras, em parceria com Marco Antônio Grijó, Rogério Coimbra e Paulo Branco.

Show Afonso Abreu na Ponte da Passagem
Show Aurora Gordon “Afonso Abreu - Na Ponte da Passagem”. Crédito: Divulgação|Sesc Glória

Sou testemunha do movimento vigoroso, criativo e rebelde que se instalou no pacato cenário capixaba, no final dos anos 1960. Era muito bom acompanhar a produção desenfreada de letras e melodias por todo lado, algumas românticas e muitas de protesto.

O show me fez lembrar de letras marcantes: “A cidade cresceu e você continua penteando os cabelos de seda, falando em solidão”, “Seus olhos espreitam um zoo, mas as feras não estão lá, Manuela”, “Via aérea.., sou meu próprio voo”, “Corina, você vem comigo, ver pontes e delírios”, “Perdi minha alma na Ponte da Passagem, esperando por você.”

Afonso tomou gosto por música logo cedo, talvez por influência de papai, que ligava a eletrola logo que entrava em casa. Seu gosto musical era bem diversificado, indo de Noel Rosa e Caymmi aos clássicos americanos.

Não me lembro de detalhes, mas sei que Afonso arranjou um contrabaixo, daqueles enormes de madeira, e começou a tentar localizar o lugar das notas nas cordas e a arrancar sons com cada uma delas. No início dos 1960, ele se juntou a um amigo, que aprendia a tocar piano, e a Mário Rui, que tocava bateria. Com o andar dos ensaios e das primeiras apresentações no Praia Tênis Clube, Afonso passou a valorizar gestos das mãos e a usar expressões faciais para realçar sons e compassos. Foi o bastante para merecer mais palmas por suas performances com aquele instrumento enorme. A amiga Beatriz Abaurre escreveu que ele “cavalgava no contrabaixo”.

Pois até hoje dói imaginar a cena do contrabaixo “navegando” em frente ao Iate Clube, por obra de um bêbado imbecil, depois que a festa terminou. Aquele instrumento estava sendo pago, a duras penas, com a renda de apresentações.

A chegada Grijó a Vitória produziu impactos no meio musical da cidade. Baterista profissional, ele assumiu o controle das baquetas de Mário Rui, que adotou a guitarra e os pedais de distorções sonoras, e Afonso que se encantou com o baixo elétrico. Depois de muitos ensaios e brigalhadas, eles criaram Os Mamíferos em 1966, uma fonte poderosa de contracultura esbravejante.

Muitas feras - músicos e letristas - frequentavam nossa casa na Madeira de Freitas. Mamãe gostava de ver o entra e sai de gente cabeluda com roupas coloridas, carregando seus instrumentos para tocar altíssimo no cômodo que existia nos fundos do terreno. É bem provável que ela até oferecesse broa de milho e café para alegrar a turma. Animada, ela foi ver os “meninos” na Boate Macumba. A precariedade dos recursos técnicos atrasou o início do show. Em casa, ela comentou: “Meu filho, o homem já foi na Lua e voltou e vocês continuam a pelejar com esses plugs…”

Para espanto de muitos, bacharel em direito, Afonso arranjou um emprego em Colatina, aonde ia e voltava diariamente dirigindo um fusca vermelho, ano 1959. Nem imagino o que ia matutando estrada afora, mas sei que logo depois ele resolveu atuar na área da cultura, começando pela programação musical da Rádio Espírito Santo. Daí em diante percorreu uma longa carreira de servidor público, passando pelo setor de música da Fundação Cultural, armando o Circo da Cultura, dirigindo o Teatro Carlos Gomes e secretariando a Lei Rubem Braga, na Prefeitura de Vitória. Isso, sempre atuando em favor da criação de oportunidades para seus colegas de ofício e de sonhos.

Em paralelo, ele foi criando grupos musicais dedicados aos sons e compassos da Bossa Nova e do Jazz. Que me lembre: Bandônica, Mistura Fina, Quarteto JB e Afonso Abreu Trio, que sempre recebiam artistas de primeira linha, para alegrar as noites capixabas. Jantar para os músicos depois do trabalho era condição contratual obrigatória.

Na noite desta sexta haverá uma terceira edição daquele show maravilhoso, mas os ingressos já estão esgotados. Torço para que o pessoal do Sesc encontre condições para uma nova rodada de apresentações da banda Aurora Gordon, para a alegria dos muitos que não conseguiram ingresso.

E viva meu querido irmão Afonso Abreu, um dos grandes expoentes das noites capixabas, pai muito orgulhoso de Murilo!

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