Publicado em 30 de setembro de 2020 às 15:01
Um programa beneficente liderado pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro, repassou, sem edital de concorrência, dinheiro de doações privadas a instituições missionárias evangélicas aliadas da ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos). >
Beneficiada com R$ 240 mil, a Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB) foi indicada por Damares para receber os recursos, segundo documentos do programa Pátria Voluntária, que é comandado por Michelle.>
A AMTB consta do site da Receita Federal e em sua própria página na internet com o mesmo endereço de registro da ONG Atini, fundada por Damares em 2006 e onde a ministra atuou até 2015. A reportagem esteve no local, onde funciona um restaurante desde novembro do ano passado.>
Criado por decreto do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em julho do ano passado, o Pátria Voluntária é coordenado pela Casa Civil e tem como objetivo fomentar a prática do voluntariado e estimular o crescimento do terceiro setor, arrecadando dinheiro de instituições privadas e repassando para organizações sociais.>
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Os recursos das doações repassadas às ONGs são oriundos do projeto Arrecadação Solidária, vinculado ao Pátria. O programa já consumiu cerca de R$ 9 milhões dos cofres públicos em publicidade pagos pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência.>
Duas organizações filiadas à AMTB também receberam verbas de doações sem que houvesse um edital público. O Instituto Missional obteve R$ 391 mil, e o SIM (Serviço Integrado de Missões), R$ 10 mil.>
A AMTB e o Missional foram as entidades que receberam os maiores repasses até agora. Todos os recursos foram destinados à distribuição de cestas básicas "a famílias vulneráveis".>
Com sede em Maringá (PR), o "Instituto Missional é dirigido por Weslley Kendrick Silva, um empresário que tem fotos em seu perfil no Facebook em confraternização com Damares e o secretário Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente de Damares, Maurício Cunha.>
Cunha dirige a ONG CADI (Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral), filiada à AMTB. Segundo a Casa Civil, a definição de quem recebe os recursos do programa do governo ocorre "no âmbito do Conselho de Solidariedade", que foca em projetos que beneficiam grupos mais vulneráveis à pandemia do novo coronavírus.>
A ata de uma reunião do programa, obtida pela reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação, mostra que Damares apresentou o nome da AMTB para receber os recursos do programa de Michelle. O documento foi elaborado durante um encontro do Conselho de Solidariedade, composto por representantes dos ministérios da Mulher, do Desenvolvimento Regional, da Ciência e Tecnologia, Casa Civil e Secretaria de Governo.>
A Fundação Banco do Brasil, que apoia o programa, também faz parte. "A reportagem pediu a prestação de contas das organizações à Casa Civil, que respondeu que ela é realizada para a Fundação Banco do Brasil.>
Já a fundação respondeu que "informações relativas à prestação de contas são remetidas pela Fundação BB à Casa Civil, conforme previsto no acordo firmado entre as partes". E que, "desta forma, a solicitação deverá ser feita à Casa Civil".>
Segundo o registro da reunião do dia 11 de maio, a secretária-executiva do programa, Adriana Pinheiro, disse que a AMTB "foi apresentada pela ministra Damares por ser uma entidade séria, que trabalha há muitos anos com esse público e possuem potencial para chegar a essa população mais distante".>
A secretária-executiva adjunta do colegiado, Pollyana Andrade, completou que a AMTB "é uma organização que tem muitas outras vinculadas a ela, e isso faz com que ela tenha um potencial muito grande para chegar a este público".>
O presidente da Fundação do Banco do Brasil, Asclépius Ramatis, chegou a manifestar preocupação com o repasse durante a reunião. Disse não ter certeza se a AMTB poderia receber a verba por ter "caráter religioso".>
Pollyana, no entanto, relembrou que, em discussões anteriores com a Fundação Banco do Brasil, foi dito que, para ações emergenciais, haveria exceção.>
Antes da reunião do conselho em maio, Damares já havia se encontrado com representantes da AMTB no dia 18 de abril, por videoconferência, para discutir o projeto.>
Desde abril, foram arrecadados R$ 10,9 milhões, dos quais R$ 4,3 milhões foram aplicados até agora sem um edital público. Segundo a Casa Civil, o programa passou a fazer chamamento público para o restante das doações. Os dados são disponibilizados em um painel do programa.>
Uma das ações de entrega de cestas do Instituto Missional foi acompanhada por uma equipe do jornal Folha de S.Paulo, em julho, a convite da entidade. Quem definiu que famílias seriam beneficiadas foram os pastores locais parceiros do projeto.>
"Eles conhecem a realidade e são orientados a ajudar quem mais precisa. As doações são registradas com fotos", afirmou o diretor do instituto, Cassiano Luz, na ocasião. Luz é o atual vice-presidente da AMTB, onde já atuou também como presidente.>
O diretor disse que a entidade foi procurada pela AMTB, a partir de um convite feito pelo Pátria Voluntária, "para colaborarmos em uma ação emergencial de distribuição de alimentos na região dos rios Japurá e Juruá, Estado do Amazonas".>
"Ficamos honrados e motivados com a oportunidade, tendo em vista nosso desejo 'missional' de servir aos mais vulneráveis", disse. Segundo a Casa Civil, os repasses são feitos a associações privadas "aptas a receberem recursos descentralizados pela Fundação Banco do Brasil e oriundos de doações recebidas pela Arrecadação Solidária".>
Os outros R$ 7,5 milhões arrecadados, segundo o órgão, estão comprometidos "com ações selecionadas pela Chamada Pública 01-2020, que se encontra na fase de acolhimento das propostas selecionadas".>
A assessoria do ministério de Damares afirma que a AMTB "reúne mais de 50 instituições com capilaridade em todo o território nacional" para apoiar as ações do Pátria Voluntária. A pasta "entende que o atendimento aos povos indígenas, comunidades quilombolas e ribeirinhas será efetivo e de qualidade com a parceria com entidades com esta finalidade, como ocorre com as Santas Casas de saúde em todo o Brasil", diz.>
"O repasse de recursos pela Fundação Banco do Brasil, portanto, deve levar em consideração o critério de efetividade das ações, no espectro mais amplo possível que o Pátria Voluntária se destina, critério este que o MMFDH vem se pautando na indicação das entidades capazes de apoiar e desenvolver os objetivos do programa", completa.>
Damares também informou que a secretaria de Maurício Cunha "não participa das decisões" nem "opinou sobre a alocação de recursos oriundos do Pátria Voluntária para qualquer instituição. Ressalta-se, ainda, que o CADI não recebe e nem repassa recursos financeiros para a AMTB".>
Procurada, a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência não esclareceu os critérios utilizados para essas entidades receberem os recursos e nem sobre a relação entre as ONGs.>
O presidente da AMTB, Paulo Feniman, disse que a organização não funciona mais no local apontado pelo site e que este poderia estar desatualizado. O endereço foi retirado do site após o contato da reportagem.>
Feniman disse que, "por ser uma associação, a AMTB só tem endereço fiscal", e sua operação "hoje está dividida entre Rio, Paraná, São Paulo, porque a nossa equipe está espalhada". Afirmou também que a AMTB não foi beneficiada pelo programa, "mas executora de uma ação".>
Além disso, disse que não há relação de sua associação com a Atini, mas que esta tinha sala alugada no mesmo imóvel onde a AMTB funcionava. "Eles não tinham expediente presencial no prédio".>
A Atini disse que a organização e a AMTB não possuem vínculo, "tendo apenas dividido espaço de trabalho". E que a saída de Damares do grupo "se deu pelo fato de a ministra estar engajada, naquele momento, em várias frentes ligadas aos Direitos Humanos".>
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