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Policial sobre suicídio de agentes em SP: 'Mais velórios do que gostaria'

Policial sobre suicídio de agentes em SP: 'Mais velórios do que gostaria'

O delegado Flavio Katinskas, 52, carrega a culpa por não ter percebido que a colega com quem trabalhava todos os dias ia se suicidar

Publicado em 26 de setembro de 2019 às 18:46

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Policiais vêm apresentando casos de adoecimento psicológico. (Divulgação | Governo do Estado de São Paulo)

O delegado Flavio Katinskas, 52, carrega a culpa por não ter percebido que a colega com quem trabalhava todos os dias ia se suicidar. A delegada Maria Cássia Almagro Mezzomo, 54, combativa com o crime organizado, desafiou o PCC, mas não o desgaste mental.

"Como policial, me sinto impotente. Tentamos diminuir o sofrimento dos outros, de quem nos procura, mas não conseguimos acudir uma pessoa amiga que passa por um drama pessoal", diz.

É que ela vestia a típica capa de durona, conta Katinskas. "Tratar de aflições pessoais em ambiente profissional era proibido. Não combina com a atividade." Mas foi uma somatória. "A questão econômica, de salário, a distância do filho e do neto [que moravam nos EUA], junto ao fato de que o policial é condicionado a ter um comportamento, como se certas coisas não o atingissem."

Maria Cássia fez tratamento psicológico particular, mas não teve auxílio da Polícia Civil, segundo o colega. O caso dela é retrato de uma epidemia. Dados divulgados nesta quarta-feira (25) pela Ouvidoria da Polícia de São Paulo mostram que o suicídio é a maior causa de vitimização de agentes na Polícia Civil do estado e a segunda na Polícia Militar –perde apenas para homicídio dos agentes na folga.

Entre 2017 e o ano passado, 78 policiais tiraram a própria vida. Destes, 17 eram policiais civis da ativa. Tendo em vista um efetivo de 28 mil agentes, a taxa de suicídio nesse grupo é de 30,3 a cada 100 mil habitantes. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), uma taxa de 10 a cada 100 mil já pode ser classificada como epidêmica. Ou seja, o suicídio na corporação é três maior do que o aceitável.

Se comparada a taxa média de suicídio das duas polícias (PM e Polícia Civil) em São Paulo (23,9 por 100 mil) com a do restante da população brasileira (5,8 por 100 mil), os policiais se suicidaram em uma proporção quatro vezes maior do que a população em geral.

Apesar disso, a Polícia Civil não tem um programa de auxílio e saúde mental. A corporação conta apenas com duas psicólogas e duas assistentes sociais.

"Precisa começar do zero. Existe uma negligência", diz o ouvidor Benedito Mariano. Para ele, o problema é agravado pelo sucateamento da corporação, que tem déficit de cerca de 14 mil profissionais, baixos salários e falta de estrutura em delegacias. "Isso dialoga com o estresse do policial, porque tem que fazer o serviço de dois ou três."

É o dia a dia do delegado Fernando Gonçalves. "Fui a mais velórios do que gostaria, e não por confrontos", diz, sobre o suicídio de colegas.

Quem atua nas delegacias "tem que aprender a trabalhar com pessoas doentes", conta ele, que é professor da Acadepol, a academia dos policiais civis no estado. Por lá, não há aulas sobre saúde mental no curso de formação dos agentes.

Nas dez delegacias pelas quais Gonçalves passou, pelo menos um colega de equipe tinha problemas psiquiátricos. "O que mais se vê são os sinais: alcoolismo, insônia, obesidade, vício em Rivotril", diz.

Numa delas, um investigador não podia mais usar arma e outro não podia dirigir. Ele mesmo já chegou a alucinar à noite: ora ria, ora chorava, no meio do sono. Mas não procurou tratamento.

Outro agente, que prefere não se identificar, relata que toma antidepressivo há quatro anos. "Depois de me envolver numa ocorrência de homicídio em decorrência de intervenção policial, sequer tive acompanhamento psicológico ou psiquiátrico."

Com carreira de 17 anos na corporação, ele conta que procurou ajuda sozinho, "pois a instituição nunca quis saber como me sinto". Ao contrário, diz, "me colocam em posto com maiores responsabilidades e cobranças".

Segundo a pesquisa, existem algumas causas principais para o suicídio de policiais. A primeira é o estresse inerente à função; depois vem a falta de suporte de serviço de saúde mental; a depressão; os conflitos institucionais, como o assédio moral; os conflitos familiares e problemas financeiros; o isolamento social, a rigidez e a introspecção; e, por fim, o fácil acesso a armas de fogo.

Em 85% dos casos, o policial usou arma de fogo para se suicidar, ainda segundo a pesquisa. A ouvidoria levou o estudo ao coronel Marcelo Vieira Salles, que comanda a PM, ao delegado-geral da Polícia Civil, Ruy Ferraz Fontes, e ao gabinete do governador João Doria (PSDB).

O texto faz recomendações de políticas de segurança pública que reduzam o índice, entre elas o aumento do piso estadual da categoria e o aumento do efetivo da Polícia Civil. Na corporação, também se propõe a criação de um programa de saúde mental, com contratação de ao menos 140 psicólogos.

No caso da PM, é preciso ampliar o programa já existente –a corporação conta com um Caps (Centro de Atenção Psicossocial), 35 Naps (Núcleo de Atenção Psicossocial) e oito psiquiatras. Como a estrutura atinge só 35% das unidades da PM no estado, o relatório sugere a instalação de mais 75 Naps, para cobrir praticamente todos os batalhões.

Outra ideia é incluir no curso de formação cerca de 80 horas de disciplina de saúde mental, assim como no estágio anual de aperfeiçoamento. O assunto também deveria ser abordado, diz o texto, nas preleções diárias nas unidades.

De acordo com Mariano, as propostas foram bem recebidas pelos comandos. O coronel Salles, da PM, prometeu colocá-las em prática.

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