Publicado em 21 de novembro de 2023 às 05:31
Em 15 de junho de 2021, o Brasil atingiu a marca de 488 mil mortes pela Covid-19. A vacinação, iniciada em janeiro, começava a engrenar, mas ainda estava distante da universalização. Naquele dia, 34,6% da população estava imunizada com a primeira dose e apenas 14,8% também com a segunda.>
Na véspera, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, havia se deixado fotografar, com peito aberto e mamilo exposto, sendo vacinado pelo então ministro da Saúde, Marcelo Queiroga.>
"Muso da imunização", resumiu a Primeira Página da Folha de S.Paulo impressa. A cena era parte de uma tentativa do governo de atenuar a imagem negacionista que emanava do chefe, Jair Bolsonaro.>
A imagem de Campos Neto rendeu brincadeiras e comentários irônicos de membros do governo que chegavam para uma reunião ministerial no Palácio do Planalto, marcada para as 8h daquele dia.>
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Agendado havia alguns dias, era um encontro rotineiro da equipe para discutir temas como economia e, inevitavelmente, a resposta do governo à pandemia, muito criticada pela postura do chefe de Estado e pelas falhas logísticas na distribuição das vacinas.>
Participavam 22 ministros, mais os presidentes dos bancos públicos (inclusive o próprio Campos Neto) e o dos Correios. Como já de praxe, o vice-presidente, Hamilton Mourão, estremecido com Bolsonaro, não foi convidado.>
Naquela manhã, o que começou como uma conversa descontraída acabou se tornando um questionamento explícito da equipe ministerial sobre a recusa de Bolsonaro em se vacinar.>
Segundo participantes da reunião que conversaram com a reportagem em caráter reservado, a pressão dos subordinados fez com que pela primeira vez o presidente tivesse dado sinais de que poderia se imunizar publicamente - embora isso, no fim, jamais tenha ocorrido.>
Um dos primeiros a puxar o tema foi Ricardo Salles, do Meio Ambiente, que deixaria o cargo dali a um mês, em meio a suspeitas de participação em um esquema de exportação ilegal de madeira da Amazônia.>
"Presidente, antes de começar a reunião, queria fazer uma proposta", disse.>
"Fala aí, Salles", respondeu Bolsonaro.>
"O senhor poderia aproveitar essa onda gerada pelo Campos Neto e, já que tem físico de atleta, também ser vacinado sem camisa pelo Queiroga", afirmou.>
A referência era a uma polêmica declaração do então presidente no início da pandemia, quando chamou a Covid de gripezinha e disse que não teria problemas se pegasse a doença por ter "histórico de atleta".>
Ouviram-se risadas discretas na sala, inclusive de Bolsonaro, que nada falou.>
Salles arrematou: "Isso vai ajudar a virar a narrativa contra o governo na pandemia. O senhor não precisa falar nada, só se deixar fotografar".>
Com o presidente calado, outros pediram a palavra. Fábio Faria, das Comunicações, foi enfático ao ligar o tema da pandemia à campanha eleitoral do ano seguinte, em que Bolsonaro disputaria a reeleição.>
Disse que o cenário econômico era muito bom e que o Brasil começava a reagir com as medidas tomadas pelo governo, como o auxílio emergencial de R$ 600 para pessoas que haviam ficado sem renda.>
Mas um dos temas centrais da eleição, argumentou, seria a pandemia, e não adiantaria listar notícias positivas se o próprio presidente parecia não acreditar na eficácia dos imunizantes. "Eu acho que, se o senhor não se vacinar, a gente corre o risco de perder", decretou, numa fala que se revelaria profética.>
Também se manifestaram em seguida, entre outros, Tereza Cristina (Agricultura), Augusto Heleno (GSI), João Roma (Cidadania) e Paulo Guedes (Economia) - este, o único que usava máscara o tempo todo.>
O recado geral da equipe era o de que Bolsonaro tinha inadvertidamente caído numa armadilha. Tantas foram as críticas e ressalvas feitas por ele contra a vacina que não importaria o que seu governo fizesse, a pecha de negacionismo estava grudada.>
A recusa do presidente ofuscava, por exemplo, a ação do governo federal para comprar vacinas em grandes quantidades e fazer sua aplicação em massa.>
Após fazer campanha contra a Coronavac, desenvolvida pelo Instituto Butantan e promovida pelo então governador de São Paulo, João Doria (à época no PSDB), o Ministério da Saúde estava investindo em outras marcas, como a AstraZeneca.>
Na mesma reunião, Tereza Cristina disse em determinado momento que as pessoas entendiam e respeitavam as dúvidas que Bolsonaro tinha sobre a vacina e a preocupação com possíveis efeitos colaterais, especialmente em crianças. Mas reafirmou o dito pelos colegas, que um gesto pessoal dele ao tomar a vacina seria muito importante.>
Também houve concordância de vários dos presentes com a oposição do presidente à obrigatoriedade de as pessoas tomarem as doses e à criação de "passaportes vacinais". A liberdade individual deveria ser respeitada.>
Após ouvir os ministros por alguns minutos, a paciência de Bolsonaro, nunca das mais longas, se esgotou. Para encerrar o assunto, propôs uma enquete informal. "Quem aqui acha que eu tenho que me vacinar?", perguntou.>
Praticamente todos levantaram o braço. Um dos poucos que se mantiveram imóveis, expressando sua discordância, foi Onyx Lorenzoni, à época ocupando o cargo de ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência.>
"Vou pensar, vou pensar", disse o presidente diante da cena.>
E encerrou a discussão, já que a pauta era extensa. Um dos pontos em debate era uma preocupação de Bolsonaro com a possibilidade crescente de racionamento de energia por causa da pior seca em mais de 90 anos, que havia esvaziado os reservatórios. A estiagem ameaçava até a privatização da Eletrobras, projeto prioritário para o governo.>
O encontro terminou por volta de 10h20. Na saída, ministros comentaram entre si terem convicção de que o presidente cederia e finalmente tomaria a vacina.>
Não foi o que se viu, no entanto. Naquela mesma tarde, poucas horas após o fim do encontro com os ministros, Bolsonaro retomava o velho personagem negacionista em um dos seus ambientes favoritos, o cercadinho de apoiadores que se concentravam na entrada do Palácio da Alvorada.>
Indignado, esbravejou contra o "passaporte da vacina", em discussão no Congresso, e prometeu vetar qualquer projeto nesse sentido que fosse aprovado.>
"A vacina vai ser obrigatória no Brasil? Não tem cabimento", disse, na conversa com a claque bolsonarista. "Eu não acredito que o projeto passe pelo Parlamento. Se passar, eu veto", prometeu.>
Um ex-ministro de Bolsonaro disse à reportagem que o então presidente foi pego de surpresa com a reação da sua equipe na reunião e chegou a cogitar realmente se vacinar. Mas desistiu quando especulações do tipo começaram a surgir em notas na imprensa, provavelmente vazadas por pessoas de seu entorno.>
Irritado, acabou se refugiando no figurino em que se sentia mais confortável, o da polarização.>
Embora não mais militasse frontalmente contra vacina, seguiu sendo um crítico de medidas de distanciamento social e uso de máscaras. Também nunca recuou completamente da defesa de remédios comprovadamente ineficazes, como a cloroquina.>
Aquele junho de 2021 ainda reservaria uma bomba para o governo relacionada à pandemia. No dia 29 do mês, a Folha revelou que o representante de uma empresa vendedora de vacinas dizia ter recebido pedido de propina de um alto funcionário do Ministério da Saúde.>
O valor do suborno seria de US$ 1 por dose da vacina AstraZeneca, num total de 400 milhões encomendadas. Bolsonaro negou as acusações, mas o caso contribuiu para arranhar ainda mais a reputação do governo nesse tema.>
Um ano, 4 meses e 15 dias depois de ter sido cobrado por sua equipe, o presidente perdeu a eleição para o hoje presidente Lula (PT) pela ínfima diferença de 1,8 ponto percentual.>
Na autópsia da derrota, quem conviveu com Bolsonaro no governo afirma quase de forma consensual que sua atitude com relação à pandemia foi definidora para o revés por estreita margem. E que ignorar os apelos para que se vacinasse foi talvez o maior tiro no pé.>
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