Publicado em 18 de outubro de 2022 às 16:37
Raiva, malária, dengue, chikungunya, zika, oropouche, mayaro, encefalite de Saint Louis, leptospirose, hanseníase, Chagas, filariose. Essas são algumas das doenças que tiveram origem em animais e que já desencadearam casos, surtos ou epidemias relevantes na Amazônia e fora dela.>
Se a biodiversidade da floresta amazônica é uma potencial fonte de doenças, por outro lado, ela impede que elas saiam do controle, mostram as conclusões de um estudo recente.>
O trabalho foi conduzido por Joel Henrique Ellwanger, da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que revisou centenas de pesquisas sobre a relação entre zoonoses (doenças transmitidas de animais ao homem) e desequilíbrios ambientais.>
"Estamos lançando um alerta com esse artigo", diz o cientista, que vê "riscos elevados" de surgimento e reemergência de doenças infecciosas a partir da Amazônia.>
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A maioria das doenças infecciosas (60%) originou-se de patógenos de animais que saltaram para os humanos (fenômeno conhecido como "spillover", em inglês), como o Sars-CoV-2.>
O IEC (Instituto Evandro Chagas), de Belém, isolou 180 vírus diferentes da Amazônia, dos quais 116 eram novos para ciência, 37 associados a doenças em humanos e nove com potencial de surtos e epidemias importante no país, como dengue, zika, chikungunya, febre amarela, encefalite Saint Louis, febre do Nilo Ocidental, mayaro, oropouche e rocio.>
A relação entre o surgimento dessas doenças e alterações ambientais está bem estabelecida na ciência, afirma Pedro Vasconcelos, virologista aposentado do IEC.>
O contato inicial do homem com o patógeno, porém, é insuficiente para produzir uma epidemia ou pandemia. São necessárias condições sociais, demográficas, biológicas (como alta transmissibilidade) e ambientais, pondera Ellwanger.>
Ambientes com alta biodiversidade "diluem" as espécies de alto risco de zoonoses, o chamado "efeito de diluição". Mosquitos, por exemplo, podem ser comidos por uma variedade de predadores nesses ambientes.>
Nesse sentido, um estudo da USP (Universidade de São Paulo) mostra que a redução da floresta diminuiu a diversidade geral dos mosquitos em áreas da Amazônia permitindo a dominância da espécie transmissora da malária.>
Abertura de estradas são um importante vetor do desmatamento e da redução da biodiversidade, resultando em explosões de doenças, como na construção da rodovia Transamazônica, durante a ditadura, com surtos de leptospirose, leishmaniose, doença de Chagas, malária e mayaro.>
Dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) mostram um aumento expressivo do desmatamento na Amazônia nos últimos quatro anos. Cerca de 95% dos desmatamentos na região ocorrem a uma distância de 5,5 km em cada lado da estrada, segundo o pesquisador Carlos Nobre, da USP.>
Outro estudo da USP mostrou que a febre amarela se dispersa mais rapidamente nas estradas adjacentes à floresta e que os blocos de floresta reduzem essa dispersão. Pesquisadores gaúchos apontaram ainda que estradas funcionam como túneis de vento transportando mosquitos da doença.>
A construção das hidrelétricas de Samuel (Rondônia) e Tucuruí (Pará), na década de 1980, produziu enxames de mosquitos, segundo pesquisas de Philip Fearnside, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia).>
Em Tucuruí, os mosquitos Mansonia brotavam das plantas aquáticas na superfície dos reservatórios. O inseto transmite o verme da filariose (ou elefantíase) ainda presente na Amazônia. O fenômeno chegou a provocar migração significativa de indígenas parakanãs e outros moradores, escreveu Fearnside.>
"Eu estava em Tucuruí à época. Era uma loucura, os pesquisadores do Inpa chegavam a contar 600 picadas de mosquitos, por hora, em uma pessoa", relembra Fearnside, que atualmente estuda os impactos ambientais da BR-319 na Amazônia.>
Na Amazônia peruana, um estudo internacional mostrou que o vetor da malária (Anopheles darlingi) foi capaz de picar 278 vezes mais nas regiões desmatadas.>
No final dos anos de 1980, Rondônia chegou a ser conhecida como "capital mundial da malária" em razão da epidemia causada pela depredação da floresta. Registraram-se até 300 mil casos por ano, segundo pesquisa.>
O desmatamento também impacta microrganismos dos solos, aumentando seus genes de resistência a antibióticos, tornando-os potenciais ameaças à saúde global e segurança alimentar, concluiu estudo brasileiro.>
A caça na Amazônia expõe humanos ao contato direto com fluidos e vísceras de animais silvestres. Pesquisa mostrou que 80% dos habitantes dos centros urbanos da Amazônia consomem carne selvagem, oriundas de mercados locais (80%) ou caçada por familiares (15%), ultrapassando 10 mil toneladas de carne por ano.>
Nas feiras tradicionais, como a Feira da Panair, em Manaus, animais e frutas silvestres são expostos a milhares de pessoas cotidianamente. É comum o hábito de manipular e cheirar os peixes para avaliar a qualidade. O contato é intenso, semelhante ao que ocorre em outras partes do mundo, diz o biólogo do Inpa Adalberto Luis Val.>
Em 2021, a ingestão de peixes contaminados provocou a "doença da urina preta" (síndrome de Haff) em regiões amazônicas. Uma das hipóteses é que ela seja causada por vírus, diz Val.>
O consumo de tatus levou a surtos e casos de hanseníase no Pará e micose sistêmica ("doença do tatu") no Ceará e no Piauí.>
A vigilância sanitária é deficiente na Amazônia, avalia Adalberto Luis Val. São necessários pesquisadores qualificados e tecnologia de ponta para identificar patógenos. O Brasil destina à Amazônia cerca de 3% do total investido em ciência e tecnologia, para uma área de 60% do território do país, lamenta o pesquisador.>
A veterinária Alessandra Nava atua na linha de frente das zoonoses amazônicas pela Fiocruz Amazônia. Ela chama atenção para o aumento de casos de raiva em humanos na região, "altamente correlacionados ao desmatamento", diz.>
O desmatamento abre ainda caminho para o gado bovino que, por sua vez, atrai morcegos hematófagos, transmissores da raiva. O resultado é que as mordeduras de morcegos estão aumentando em humanos e no gado, segundo levantamento de sua equipe.>
O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.>
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