Publicado em 12 de maio de 2024 às 09:37
As chuvas e as inundações que arrasaram o Rio Grande do Sul afetaram milhões de pessoas, deixaram centenas de milhares de desabrigados e causaram mais de 100 mortes. Mas, em termos de saúde pública, as consequências do evento climático continuarão por muito tempo — e exigirão todo um planejamento das autoridades e dos profissionais da área.>
Segundo evidências colhidas a partir de outras grandes enchentes que ocorreram no mundo em anos recentes, a tendência é de um aumento importante nos casos de diversas doenças infecciosas, como diarreias, problemas respiratórios, leptospirose, hepatite A e dengue.>
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil explicam que essas enfermidades virão em ondas, de acordo com o tempo de incubação de vírus, bactérias e outros patógenos e também devido ao tipo de exposição de risco que as pessoas envolvidas na tragédia tiveram e terão daqui em diante.>
Confira a seguir que ondas de doenças infecciosas são essas e o que pode ser feito — do ponto de vista individual e coletivo — para diminuir o impacto delas.>
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Essa linha do tempo se inicia a partir das chuvas e das inundações. Nessas ocasiões, as pessoas que vivem nas áreas afetadas tiveram o primeiro contato com a água.>
Muitas também precisaram sair de suas casas a nado — e, nesse processo, tocaram ou ingeriram a matéria orgânica que subiu de bueiros, valas e esgotos.>
Esse contato se dá por meio da pele, das mucosas e da boca, pela ingestão acidental desse líquido. >
Além disso, alguns indivíduos se feriram em pedaços de vidros, madeiras e outros materiais cortantes — o que também abre novas portas de entrada para patógenos no organismo.>
"Como podemos imaginar, essa água está nitidamente contaminada. Ela é escura e deve estar cheia de matéria orgânica, com excretas de humanos e outros animais", diz o médico Alessandro C. Pasqualotto, presidente da Sociedade Gaúcha de Infectologia.>
"E obviamente quem teve contato com esses líquidos corre um risco maior de adoecer", complementa.>
O infectologista pondera que, numa situação de emergência como a que muitos gaúchos passam nos últimos dias, a prioridade é salvar vidas e levar o máximo de pessoas a locais seguros.>
Além disso, é preciso lidar com as consequências imediatas do desastre, como os traumas, as fraturas, a hipotermia, os afogamentos e os choques elétricos.>
Mas, passados os primeiros dias após o pico das inundações, é preciso se preocupar com as doenças infecciosas que muitos contraíram durante esse processo — o que nos leva à onda número um.>
Muito do conhecimento acumulado sobre as consequências à saúde de grandes enchentes vem de países asiáticos, como Índia, Paquistão e Indonésia, que historicamente lidam com problemas do tipo.>
Trabalhos publicados a partir da experiência desses lugares permitiram encontrar uma espécie de padrão nas dinâmicas de doenças infecciosas após o desastre, além de saber o tempo que elas demoram a aparecer.>
Um trabalho de 2018 feito na Universidade de Queensland, na Austrália, destaca que "as inundações são o desastre natural mais comum no mundo".>
Ao analisar diversos acontecimentos do tipo, os autores do estudo apontam que, nos primeiros dez dias após o evento climático, as doenças que mais aparecem são as infecções de pele, as pneumonites ou pneumonias por aspiração, as infecções respiratórias virais e as gastroenterites (a popular diarreia).>
O infectologista Alexandre Vargas Schwarzbold, professor da Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, explica que muitos desses quadros estão ligados ao contato com a água contaminada.>
"Inclusive, as doenças diarreicas são a maior causa de morte por questões infecciosas após desastres hídricos", afirma.>
Os mais vulneráveis a essas infecções intestinais são as crianças muito pequenas e os mais velhos, grupos que merecem uma atenção especial para evitar quadros extremos de desidratação.>
As infecções de pele também estão relacionadas a esse mesmo fenômeno — o contato com materiais contaminados das enxurradas.>
Já as infecções respiratórias costumam ser consequência das aglomerações. Isso porque dezenas de milhares de pessoas estão em abrigos, muito próximas umas das outras. E essa condição facilita a transmissão de vírus causadores de resfriados, gripe e covid-19.>
As moradias improvisadas, com higiene precária, também reúnem as condições para a dispersão de parasitas, como aqueles que provocam a escabiose (sarna) e a pediculose (infestação por piolhos).>
Schwarzbold, que trabalha em Santa Maria, diz que já está vendo casos como esses na cidade.>
"Como o município fica numa região central do Estado, ele foi afetado antes que a região de Porto Alegre. Então já começamos a observar essa primeira etapa se desenrolar por aqui", conta o médico, que também é consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBInfecto).>
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que o poder público deve estar preparado para lidar com esses cenários.>
No caso de escabiose e pediculose, por exemplo, é possível reforçar o estoque de drogas antiparasitárias. Para as diarreias, é necessário garantir acesso à água potável e remédios que aliviam os sintomas.>
Para as doenças respiratórias (e algumas outras sobre as quais falaremos adiante), pode-se pensar num reforço na vacinação — há doses disponíveis contra influenza (o causador da gripe), o vírus sincicial respiratório (um dos responsáveis por resfriados), o coronavírus (covid-19) e até contra alguns agentes por trás da pneumonia.>
Os membros da SBInfecto e de outras entidades médicas, aliás, estão trabalhando num documento sobre o tema, para orientar quais são as vacinas mais importantes nesse momento e quais públicos podem se beneficiar dessas aplicações.>
Do ponto de vista individual, é possível também tomar alguns cuidados para diminuir o risco de contato com patógenos, como lavar bem as mãos, fazer a higiene adequada de frutas e verduras, não comer alimentos que tiveram contato com a enchente e tomar apenas água mineral — ou filtrar, ferver ou aplicar uma solução de hipoclorito de sódio na água que vem de outras fontes.>
O Ministério da Saúde possui uma cartilha que detalha os principais cuidados com a água e os alimentos após desastres.>
Passados entre sete e dez dias das inundações, outras moléstias ganham força e relevância.>
A principal preocupação aqui é a leptospirose, doença causada por uma bactéria transmitida a partir do contato com a urina de animais, principalmente ratos.>
Muitas vezes, esse micro-organismo invade o corpo de uma pessoa lá atrás, no momento em que ela tem contato com a água contaminada. Mas há um tempo de incubação, ou um período em que o patógeno não dá sinais de sua presença, até que os primeiros sintomas deem as caras.>
Geralmente, esse tempo de incubação da leptospirose é de 7 a 14 dias, mas pode se estender por até um mês.>
"O indivíduo acometido geralmente apresenta febre, cansaço, dor muscular, particularmente nas panturrilhas, náusea, vômito, pele amarelada…", lista Schwarzbold.>
Mas não é necessário o aparecimento de todo esse rol de sintomas para gerar uma suspeita — ainda mais numa situação como a que se desenrola em tantas cidades gaúchas no momento.>
De acordo com os especialistas, mesmo um quadro febril mais simples já é motivo para fazer uma avaliação com um médico. A partir da análise, o profissional da saúde pode levantar uma suspeita diagnóstica e iniciar um tratamento adequado.>
No caso da leptospirose, a SBInfecto e outras entidades divulgaram um posicionamento no dia 5 de maio em que defendem o tratamento profilático a indivíduos de alto risco.>
Na prática, isso significa que pessoas que tiveram muito contato com material contaminado — como as equipes de socorristas de resgate e voluntários, além dos moradores que ficaram na água por um tempo prolongado — devem tomar um remédio preventivo, antes mesmo de apresentar qualquer sintoma.>
Esse tratamento, chamado no jargão médico de quimioprofilaxia, pode ser feito com dois antibióticos (doxiciclina ou azitromicina), prescritos em dose única ou uma vez por semana (no caso de socorristas e equipes de emergência). >
Importante: esses fármacos devem obrigatoriamente ser indicados por um médico, nunca tomados por conta própria.>
"É preciso dizer que houve muito debate até chegarmos a essa recomendação, pois os estudos que temos à disposição são pequenos", pondera Pasqualotto, que também é chefe do Serviço de Infectologia da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.>
"Mas, considerando o que estamos vivendo agora, o fato de que não conseguiremos fazer o diagnóstico adequado porque o sistema de saúde está desestruturado e a leptospirose ser uma doença grave, que pode matar, concluímos que alguns grupos poderiam se beneficiar da quimioprofilaxia", justifica ele.>
Para as famílias que forem liberadas a retornar para casa, vale ter um cuidado extra aqui. As autoridades de saúde orientam o uso de equipamentos de proteção, como botas e luvas, na hora de limpar a lama e a água acumuladas — justamente para limitar o contato com a urina contaminada.>
Além da leptospirose, os médicos também se preocupam com outras doenças infecciosas transmitidas por água e materiais contaminados nessa segunda onda, como é o caso de tétano e hepatite A.>
Para ambas, existem vacinas disponíveis — e alguns indivíduos podem necessitar de um reforço nos próximos dias.>
Quando se fala de problemas transmitidos por água contaminada, algo que sempre vem à mente é a cólera.>
Mas essa condição não parece ser uma preocupação de momento no Rio Grande do Sul. Isso porque o vibrião colérico, ou as bactérias causadoras do quadro, não são detectadas no Estado há décadas.>
No entanto, o Brasil voltou a identificar um caso de contaminação local por cólera em abril deste ano na cidade de Salvador, na Bahia.>
"Portanto, precisamos ter uma vigilância laboratorial ativa sobre essa doença também", opina Schwarzbold.>
Por fim, algo que historicamente sucede as grandes inundações são as doenças transmitidas por vetores, como é o caso da dengue.>
No entanto, a situação no Rio Grande do Sul em relação a esse problema de saúde é incerta, apontam os especialistas. Isso porque o mosquito transmissor, o Aedes aegypti, costuma ficar mais ativo quando a temperatura está elevada, durante o verão e a primavera.>
E, em pleno outono, as cidades gaúchas começam a experimentar um clima frio — algo que o Aedes não curte tanto assim.>
Por um lado, esse cenário pode significar menos casos de dengue nas próximas semanas.>
No entanto, isso não permite que gestores e profissionais de saúde relaxem completamente em relação a essa doença.>
"A dengue já era uma preocupação antes das enchentes, pois tivemos um número elevado de casos e mortes no Brasil inteiro neste ano. E isso afetou inclusive áreas que não costumavam ter esse problema, como é o caso da região Sul do país", analisa Pasqualotto.>
"À medida que a água começar a baixar, podemos ter a formação de muitos focos de criadouro de mosquito e a dengue voltará a ser uma preocupação", complementa ele.>
Schwarzbold lembra que, apesar do clima mais frio esperado no Rio Grande do Sul para as próximas semanas, o Estado costuma experimentar nessa época do ano um fenômeno chamado "veranico", com alguns dias de calor.>
"Portanto, se depois dessa inundação tivermos um aumento de temperatura, mesmo que por um período curto, isso pode ampliar a capacidade do mosquito", analisa o médico. "Daí teremos mais um problema.">
As questões de saúde envolvendo um evento climático extremo como este superam a barreira de vírus, bactérias, parasitas e protozoários.>
"É como se estivéssemos voltando ao período inicial da pandemia de covid-19, em que toda a assistência de saúde ficou desestruturada", lembra Pasqualotto.>
"Logicamente, o foco agora está no socorro emergencial das pessoas que mais precisam. Mas logo mais, todas as outras doenças podem ficar desassistidas", diz o infectologista.>
Um exemplo são as pessoas que dependem de remédios para controlar o diabetes e a pressão alta.>
Sem o devido cuidado, essas enfermidades podem descompensar e gerar as mais diversas consequências, como quadros agudos de infarto e acidente vascular cerebral (AVC).>
Quando a água baixar, também haverá necessidade de pensar em como lidar com as questões de saúde mental e todos os traumas acumulados nesse período, lembram os médicos.>
O trabalho da Universidade de Queensland citado no início da reportagem destaca que transtornos como estresse pós-traumático e depressão são outras consequências de longo prazo das grandes inundações.>
"Portanto, vemos uma preocupação geral dos profissionais da área em como manter todo o sistema de saúde minimamente estruturado", conclui Pasqualotto.>
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