Publicado em 2 de agosto de 2020 às 08:46
Queimada, gado e centenas de invasores. Três meses após uma grande operação do Ibama contra crimes ambientais, a Terra Indígena (TI) Trincheira Bacajá, no sudeste do Pará, voltou a sofrer com o aumento do desmatamento ilegal e com a presença em massa de não indígenas.>
Na semana passada, a reportagem flagrou um grande incêndio florestal em ramal (estrada de terra) a cerca de 20 km da Vila Sudoeste, pertencente ao município de São Félix do Xingu. O fogo já havia pulado para um pasto e ameaçava o gado. No ar, dois pares de araras voavam em círculos, provavelmente tentando alcançar os ninhos cercados pelas chamas.>
"Tiraram uma beira, ali. Aí, ficou um foguinho. De um foguinho, virou um fogão. Agora, queimou um monte de mango [madeira serrada] de curral de um homem ali, ficou só a cinza", afirmou um invasor, que se identificou como Márcio. Dono dos bois, ele chegou apressado de moto com uma motosserra na garupa. "Vou tirar uns paus queimando e aparar [o fogo].">
Pasto, desmatamento, bois, curral e estrada tudo ali é ilegal, pois está dentro da TI Trincheira Bacajá, homologada em 1996 e habitada pelo povo xikrin, falantes da língua caiapó. As invasões tiveram início em 2016, por meio de ramais ilegais usados para roubo de madeira, mas o desmatamento explodiu no ano passado, após as promessas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de revisar demarcações de terras indígenas e de abri-las para agricultura e pecuária.>
>
Em abril, a região foi alvo de uma grande operação do Ibama. Os fiscais destruíram parcialmente uma ponte de madeira de acesso à TI, construída junto com um aterro de cerca de 300 metros que danificou as margens do rio Negro (diferente do que corta o estado do Amazonas). Na Vila Sudoeste, o órgão ambiental desmontou duas serrarias que se abasteciam de madeira ilegal do território xikrin.>
Além disso, o Ibama multou a Prefeitura de São Félix do Xingu (por permitir a via de acesso até a TI), o presidente da associação dos invasores, Arilson Brandão, e o vereador Silvio Coelho, aliado e correligionário do senador Zequinha Marinho (PSC-PA), que vem apoiando invasores de terras indígenas localizadas no Médio Xingu.>
Via assessoria jurídica, a prefeita de São Félix, Minervina Barros (PSD), informou ter recorrido da multa aplicada pelo Ibama. A administração afirma que as pontes e as estradas de acesso à invasão estão entre um assentamento do Incra e uma terra indígena, ambas áreas de competência federal.>
"Importante frisar que o município de São Félix do Xingu possui área de 84,2 mil km², tendo mais de 10 mil km de estradas vicinais, de modo que não pode o município já combalido arcar com custos de responsabilidade do governo federal, não tendo nem pessoal para realização dessa obra, ainda mais no estágio grave da pandemia da Covid-19 no município", diz a prefeitura.>
A reportagem localizou o vereador Silvio Coelho na Vila Sudoeste, onde reside, mas ele não quis gravar entrevista. Segundo a autuação, o vereador ajudou na construção da ponte e do aterro, além de ter sido flagrado dentro da TI pelo Ibama. Brandão tampouco respondeu às solicitações enviadas via WhatsApp.>
Irritado com a veiculação na TV Globo de uma reportagem sobre a operação na Tricheira Bacajá e em outras TIs vizinhas, o governo Bolsonaro exonerou, em maio, o então coordenador de operações de fiscalização do Ibama, Hugo Loss, que participou da ação, e o coordenador-geral de fiscalização, Renê Luiz de Oliveira.>
Em seguida, o desmatamento voltou a crescer. Houve a perda de 32 hectares em junho, contra apenas 3 hectares em maio, segundo monitoramento via satélite Sirad X, da Rede Xingu+, articulação de indígenas e ribeirinhos da bacia do rio Xingu, com participação do ISA (Instituto Socioambiental). Além disso, foi detectado um novo ramal que trouxe invasores para cerca de 2 km da aldeia Kenkro, aumentando o risco de conflitos.>
No domingo (26), a reportagem enviou email ao Ministério da Defesa questionando por que a Operação Verde Brasil 2, voltada ao combate a crimes ambientais na Amazônia, não está agindo na Trincheira Bacajá, mas não houve resposta.>
Na ponte parcialmente destruída pelo Ibama, é intenso o movimento de invasores em motos, que conseguem atravessar por meio de um único tronco serrado. Um alqueire grilado ali pode custar R$ 1.500, valor bem abaixo dos R$ 30 mil por alqueire comercializados na região.>
A reportagem também flagrou um caminhão sem placas e carregado de toras em estrada próxima à Trincheira Bacajá, praticamente a única área florestal dessa região de São Félix do Xingu, município que concentra o maior rebanho bovino do país.>
No ano passado, Trincheira Bacajá perdeu 3.969 hectares de floresta, a maior taxa de desmatamento desde a homologação, segundo o monitoramento Sirad X. A maior parte dessa destruição ocorreu durante o segundo semestre, no período de seca, que favorece o desmate.>
Os invasores são da Vila Sudoeste, surgida dos anos 1990 a partir de um assentamento do Incra, e de pessoas de outras regiões do Pará e até do Tocantins. O estímulo vem das promessas de Bolsonaro de reduzir terras indígenas e da situação da vizinha TI Apyterewa, cuja desintrusão dos não indígenas vem sendo adiada pelo governo federal.>
Em agosto do ano passado, os guerreiros xikrins tentaram expulsar os invasores por conta própria, mas eles não saíram. Em setembro, após decisão judicial que determinou a reintegração de posse, a Polícia Federal intimou os invasores a deixar a área em até sete dias, sob pena de multa diária de R$ 1 mil e retirada forçada, mas novamente sem sucesso.>
Nos dias em que a reportagem esteve na região, a informação era de que o presidente da associação, Arilson Brandão, estava dentro da terra indígena, descumprindo determinação judicial. No WhatsApp, sua foto aparece com os dizeres: "Intervenção militar já com Jair Messias Bolsonaro. Nós tiamamos (sic) capitão. Terra prometida".>
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta