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É professor da FDV e advogado

Uma onda de massacres e uma humanidade adoecida

Episódios nos EUA nos fazem clamar por leis mais rigorosas e penas mais duras. Mas é preciso ter em mente que problemas assim não se resolvem com alterações legislativas e mero fortalecimento das polícias e outras agências de segurança pública

  • Israel Domingos Jorio É professor da FDV e advogado
Publicado em 31/05/2022 às 12h49
Tiroteio com mortos e feridos em escola do Texas, nos EUA
Tiroteio com mortos e feridos em escola do Texas, nos EUA. Crédito: Dario Lopez-Mills | AP | Estadão Conteúdo

Mal se recuperava a humanidade do horrendo massacre de Buffalo, que deixou 10 mortos, e somos surpreendidos pela nova carnificina irracional ocorrida no Texas. Mais 21 mortes brutais.

Além da óbvia hediondez referente à eliminação cruel de tantas vidas, cada um dos episódios tem um aspecto de especial repugnância. Em Buffalo, a motivação: o velho e estúpido ódio racial, um monstro que assola as civilizações há tantos séculos e que, ainda hoje, impressionantemente, encontra espaço até em democracias constitucionais. No Texas, a particular vulnerabilidade das vítimas: 19 crianças entre 7 e 10 anos de idade.

E o que os dois fatos têm em comum? Primeiro, a ação contra alvos não combatentes. Segundo, o uso de armas de fogo. Terceiro, a idade dos atiradores: ambos com 18 anos de idade. Ignorar essas semelhanças, que se repetem em muitos outros cenários de matança irracional, não é um ato de desatenção, mas de irresponsabilidade. O que cada um dos três pontos de coincidência pode nos dizer?

Primeiro. Que nossa sociedade está gravemente enferma. Restam as últimas gotas de empatia e compaixão. Pessoas matam desconhecidos, vítimas inofensivas aleatórias, por um tipo de prazer ou de revolta que é fruto de inversão de valores e distanciamento social. Não se vê o outro como semelhante. E essa é uma ideia que tem que ser permanentemente reforçada pela educação e pelas políticas públicas.

Segundo. Não se pode subestimar a importância de uma política de controle de armas de fogo que seja eficiente. A proibição total, tal qual originalmente pretendida pelo estatuto do desarmamento, tira as armas das mãos e casas das pessoas que se mantêm no campo da licitude, mas é incapaz de fazer o mesmo com quem já opera na criminalidade.

Do outro lado, a liberação mais ampla e facilitada leva a uma proliferação desordenada das armas e as deixa ao alcance de muitas pessoas despreparadas técnica e emocionalmente. Qualquer briga ou discussão pode ter desfecho letal, com riscos para terceiros não envolvidos. Mas armas não matam por si sós. Mais uma vez, educação e instrução podem fazer a diferença na contenção dos ilícitos.

Terceiro. A juventude, a quem se deve destinar a maior parte das medidas e investimentos educacionais, é a que mais sofre com sua ausência, com sua ineficiência e com o desajuste das relações sociais. Instituições fundamentais, como família e escola, estão enfraquecidas e as referências estão se perdendo. Referências óbvias, como o valor da vida alheia e a relevância da dor do outro.

Episódios como esses nos fazem clamar por leis mais rigorosas e penas mais duras. Mas é preciso ter em mente que problemas assim não se resolvem com alterações legislativas e mero fortalecimento das polícias e outras agências de segurança pública.

No caso desses atiradores sociopatas e suicidas, não há medo da morte, muito menos da prisão. A maioria morre nas trocas de tiros. E os que sobrevivem sempre souberam, desde o início, que se fossem pegos receberiam as piores penas possíveis, mas isso nunca os impediu de agir. O que se pode fazer, então?

Ao contrário do que se pensa, a pena não é sempre a solução. Ela é um mal necessário, uma resposta que deve ser dada ao culpado e à sociedade, após o devido processo legal. Mas não é um remédio para a enfermidade aqui retratada e não cura problemas como esse adoecimento gradual que dessensibiliza as pessoas e corrói o respeito pela vida alheia. É só por meio da educação, da cultura e da inclusão que se pode (re)estabelecer a consciência sobre o valor do outro. Parece óbvio. Mas vivemos em mundo em que, infelizmente, o óbvio precisa ser dito e repetido incansavelmente.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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