Verônica Bezerra*
Quando Chico Buarque compôs, em 1976, a música “Mulheres de Atenas”, em pleno regime militar, não utilizou o verbo inspirem-se, mas mirem-se. Como exímio conhecedor da alma feminina, fez a exortação para que as mulheres que viviam em uma sociedade patriarcal escrevessem uma história a contrapelo daquela escrita pelas mulheres de Atenas. E que jamais concordassem em ver seus direitos negados e seus desejos anulados.
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Submissão da mulher, supremacia masculina, atuação exclusiva doméstica, servidão sexual, procriação e anulação após as perdas (separação ou viuvez) são abordadas de forma contundente na música, o ponto nevrálgico da violência doméstica, decorrente de uma sociedade misógina. Quando mulheres não vivem por seus maridos, quando não mais se ajoelham, imploram ou pedem, mas conquistam o que querem; quando não mais reconhecem seus homens como heróis, príncipes, guerreiros, poderosos ou fortes, mas simplesmente um homem; quando são capazes de mitigar as tarefas de sua vida privada ou pública, sem culpas ou receios de julgamentos; quando não se propõem a quarentenas de espera sexual, e são capazes de garantir autonomia ao desejo; quando são deixadas, mas não mais secam, e encontram outros oásis; seguem na contramão de Atenas, e assim deve ser.
O mês de agosto é destinado à intensificação de campanhas e ações para o enfrentamento da violência doméstica no país, que ainda guarda números alarmantes, estando o Espírito Santo no topo dessa lista. De acordo com a Secretaria de Segurança do Estado do Espírito Santo, no primeiro trimestre de 2019 houve um aumento de 33,3% nos casos de feminicídio, se compararmos ao mesmo período de 2018.
Um dos reflexos foi o aumento do número de pedidos de medidas protetivas, que tem por base a Lei 11.340/06. A cada duas horas uma mulher é assassinada no Brasil, que tem a quinta maior taxa de feminicídio no mundo: 4,8 homicídios para cada 100 mil mulheres, de acordo com a Organização Mundial da Saúde.
A escolha do mês atribui-se à sanção da referida lei, em 7 de agosto de 2006, que consiste em um importante instrumento de proteção à mulher diante da violência doméstica e familiar. Maria da Penha Maia Fernandes, após sofrer as mais cruéis violências de seu marido, que deixaram marcas indeléveis, travou uma luta, chegando até a Organização dos Estados Americanos (OEA), Caso 12.051, e com isso conquistou esse importante mecanismo de proteção.
Hoje é preciso que fique registrado que, diferentemente do que Chico compôs em forma de alerta, mulheres têm gostos e vontades, defeitos e qualidades, sonhos e presságios. Mulheres também têm medo, enquanto termômetro da segurança, e não enquanto condição de existência. E que fique claro: se formos violadas, vamos gritar, pois hoje existem ouvidos para ouvir. O tempo de sussurrarmos solitárias e sangrando já passou.
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*A autora é advogada, coordenadora de Projetos do Centro de Apoio aos Direitos Humanos (CADH) e mestranda da FDV
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