Leis do tráfico são pichadas em muros de comunidades
Leis do tráfico são pichadas em muros de comunidades. Crédito: Ilustração/Larissa Pereira

Violência contra a mulher: tráfico impede vítimas de pedir socorro

Para evitar a presença policial nas comunidades, traficantes proíbem violência doméstica e até julgam homens agressores no "tribunal do tráfico "

Tempo de leitura: 8min
Publicado em 05/12/2023 às 07h47

Não pode roubar. Não pode matar. Não pode bater na mulher. Essas três regras do tráfico estão pichadas no muro de um bairro comandado por um grupo criminoso na Grande Vitória. Essas mesmas normas estão também, escritas de outra forma, na legislação brasileira.

Mas, quando o aparato do Estado falha em proteger mulheres de seus companheiros abusivos, a criminalidade assume esse papel. Diante da dificuldade em obter socorro ou abrigo, as vítimas de violência doméstica veem nas facções criminosas um último recurso para se manterem vivas.

Angélica

Moradora de um bairro periférico e uma sobrevivente da violência de gênero

"Aqui não tem visita tranquilizadora da Patrulha Maria da Penha. Quem dá tranquilidade para essas mulheres é o tráfico"

A Gazeta conversou com mulheres de diferentes regiões da Grande Vitória e recolheu relatos de uma tragédia cotidiana. As tentativas de feminicídio e registros de agressões físicas crescem no Espírito Santo. Em 2022, segundo o Anuário de Segurança Pública, houve 450 tentativas de feminicídio no Estado, 20% a mais que no ano anterior. Já as lesões corporais relacionadas à violência doméstica subiram 15%, alcançando no ano passado 2.254 registros.

Diante de agressões, as vítimas temem chamar a polícia ou a guarda municipal pelo risco de serem marcadas como “caguetes”, ou seja, dedo-duro, pela liderança criminosa do bairro.

Quando resolvem acionar as forças de segurança, relatam um tempo de espera excessivo para a chegada do socorro, minutos preciosos que podem ser a diferença entre a vida ou a morte. Em alguns casos, a ajuda nem sequer aparece.

O martírio não termina por aí. Ao pedirem medidas protetivas de urgência, muitas abrem mão da inclusão do endereço delas na Patrulha Maria da Penha para evitar desagradar a lideranças criminosas com a presença esporádica das viaturas durante as visitas tranquilizadoras.

Há ainda relatos de vítimas que, como último recurso, se mudam para locais onde a presença de uma facção é mais severa, para poderem contar com o tribunal do crime para lidar com o agressor.

Elas vivem em territórios chamados de conflagrados, ou seja, onde há conflito ativo entre lideranças criminosas e entre facções e a polícia.

“Se o ‘movimento’ souber que tem alguma mulher apanhando, eles vão até a pessoa. Para eles é melhor do que a polícia chegar. Fazem tudo para livrar a polícia de subir o morro”, aponta Renata, pastora que ajuda mulheres vítimas de violência em uma comunidade da Grande Vitória.

Os relatos das mulheres ouvidas por A Gazeta revelam camadas de violência: as agressões e ameaças, o desamparo pelas políticas públicas, a proteção que só vem do poder paralelo. Nesta série de reportagens, nenhuma dessas mulheres será identificada, para protegê-las de eventuais retaliações. Os nomes usados nos textos serão fictícios. Idades e bairros também serão mantidos sob sigilo.

Rede de apoio

“Quando eu precisei, a Polícia Militar não veio. Os vizinhos que chamaram quando viram a agressão. Eu estava dormindo, e ele me acordou com pauladas”, conta Angélica, que ainda lembra com clareza da cena, apesar de já terem se passado alguns anos.

A violência aumentou quando o filho dela começou a bater no agressor. Ligaram para a polícia de novo. E nada. “Poderia ter acontecido algo pior. Ou ele ter me matado ou os vizinhos terem matado ele”, avalia.

Hoje, Angélica integra uma rede de mulheres que ajuda outras vítimas, principalmente as mais vulneráveis. O grupo não é formal, não tem sede, placa ou CNPJ. Mas atua pagando passagens de ônibus para as vítimas irem até a delegacia denunciar, arrumam frete para ajudar com a mudança de endereço e fornecem cestas básicas para que elas consigam pelo menos se alimentar.

“A mulher tem que ir atrás de fazer a denúncia, pedir pensão, medida protetiva, tudo sem recurso público e sem dinheiro para a passagem. Se o marido sai de casa e ele era o provedor, essa mulher passa fome”, conta.

A ativista navega pelas regras das comunidades periféricas e conhece o dilema das vítimas em chamar a polícia, mesmo quando estão em situação de perigo.

“Se ela chamar a polícia num lugar desses, ela está correndo risco. Não pode chamar, porque senão o traficante começa a ver ela como um problema também. Então, eles mesmos fazem a proteção. Muitas vezes eles fazem muito mais pela segurança da mulher do que o Estado em si”, afirma.

Angélica conta que há locais conhecidos na Grande Vitória pela baixa tolerância dos traficantes aos crimes relacionados à violência doméstica. E, quando o Estado falha, são para esses lugares que as vítimas são direcionadas. Somente em novembro deste ano, três mulheres foram deslocadas para um bairro onde “não pode bater na mulher” em busca de proteção contra os agressores.

Angélica

Moradora de comunidade periférica e sobrevivente de violência doméstica

"Vários desses que estão na vida criminosa são filhos de mulheres que já foram vítimas de violência. Eles se põem no lugar da mulher que apanha"

Pedido de oração

Em outro ponto da Grande Vitória, Renata fornece apoio espiritual para as mulheres vítimas de violência. Ela é pastora de uma igreja evangélica pequena que fica no “miolo” de uma bairro dominado pelo tráfico de drogas.

Pastora em comunidade da Grande Vitória dá poio espiritual para mulheres vítimas de violência
Pastora em comunidade da Grande Vitória dá apoio espiritual para mulheres vítimas de violência. Crédito: Ilustração/Larissa Pereira

A geografia do local, cheio de becos e escadarias, impede que policiais cheguem com rapidez. Por esse mesmo motivo, é nesse ponto onde ficam os traficantes do “alto escalão” da comunidade.

Renata lembra que, em geral, só se vê pessoas fardadas por lá quando há grandes operações policiais. E para que a atividade criminosa não seja interrompida, o “dono do morro” mantém todos na linha.

A pastora já viu várias vezes o “movimento” ser chamado para apartar brigas e violência doméstica dentro das casas dos moradores. A orientação é sempre a mesma: se não parar, vão sofrer as consequências.

Renata

Pastora

"Eles botam pra correr. Já vi mandarem as pessoas embora do morro, expulsarem daqui. Eles batem também, dependendo do que a pessoa fez"

Não são só as agressões contra mulheres que são gravemente punidas pelo tribunal do tráfico. “Parente que estupra a própria filha, sobrinha, se alguém fica sabendo, eles acabam se dando mal. Se o movimento descobre, eles mesmos resolvem. Até pra não acontecer com outras pessoas”, relata.

Vulnerabilidade

A coordenadora de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres na Defensoria Pública do Espírito Santo, Maria Gabriela Agapito, diz que as situações narradas pelas vítimas ouvidas por A Gazeta são conhecidas pelo órgão.

“Quanto mais vulnerável a mulher for, mais suscetível à violência doméstica e de gênero ela está, e mais difícil o acesso dela aos serviços e políticas públicas”, afirma.

Maria Gabriela enfatiza que, embora todas as mulheres possam sofrer com a violência doméstica e de gênero, as negras e periféricas são as mais afetadas, e são também as vítimas mais frequentes da violência mais grave, que é o feminicídio.

“Se essas mulheres estão inseridas em uma área dominada pelo tráfico de drogas, pelo conflito ou por milícias, a gente tem aí uma falência dos órgãos de Justiça e de repressão em atender essas mulheres no contexto da violência doméstica”, avalia.

Ela aponta que, diante desse cenário, as ferramentas que o poder público dispõe atualmente para proteger essas mulheres — medidas protetivas, botão do pânico, visitas tranquilizadoras — falham em atender à necessidade específica delas.

“Essas mulheres estão mais desprotegidas. E a gente tem que trabalhar dando atenção a essa vulnerabilidade. Temos que ter políticas públicas específicas que pensem em situações alternativas para proteção delas”, diz Maria Gabriela. 

A defensora sugere algumas: “É preciso pensar em um programa de transferência de renda, em abrigamento provisório. Até o Judiciário, na hora de olhar a medida protetiva, deve ter olhar sensível à situação dessas mulheres. Não é qualquer tipo de medida (protetiva) padrão que vai atender essa mulher. Essa mulher deve ser escutada e, muitas vezes, dentro de um processo, ela não é ouvida como deveria ser.” 

O Espírito Santo atualmente só conta com um abrigamento provisório para mulheres vítimas de violência doméstica para atender a todas as capixabas. 

MP e governo do ES dizem desconhecer problemas relatados 

O secretário estadual da Segurança Pública, Coronel Alexandre Ramalho, afirma que o órgão não tem conhecimento de situações em que a polícia não teria conseguido chegar em uma mulher que pediu socorro devido ao bairro em que ela mora. Mas reconhece que pode, sim, haver empecilhos em algumas circunstâncias.

“Na madrugada, em determinado horário, talvez uma guarnição da PM tenha dificuldade de chegar. Mas a gente usa reforço, pede à família para descer (o morro)”, afirma.

Uma guarnição é composta, geralmente, de uma viatura e dois policiais militares. Segundo o secretário, em áreas conflagradas, é preciso mais guarnições para garantir a segurança dos policiais.

“A gente toma algumas precauções, mas, com o devido reforço, a gente acessa. Não tem demanda aberta”, assegura. 

A promotora de Justiça e coordenadora do Núcleo de Enfrentamento às Violências de Gênero em Defesa dos Direitos das Mulheres (Nevid) do Ministério Público do Espírito Santo, Cristiana Esteves Soares, também afirma que o órgão não tem nenhum registro de falha das forças de segurança em socorrer mulheres em situação de violência no Estado.

Ela diz que casos desse tipo devem ser denunciados à Corregedoria da PM.

“Não recebemos informações de que a polícia não vai ao local para realizar o atendimento que é obrigatório, assim que é acionada, ainda mais se tratando de um crime grave e que pode virar um feminicídio”, diz a promotora.

Ela considera preocupante que mulheres estejam abrindo mão da Patrulha Maria da Penha, que faz visitas tranquilizadoras, por medo de serem repreendidas pelos criminosos. Mas ressalta que é preciso que essas informações sejam reportadas de maneira oficial para que os órgãos responsáveis possam tomar alguma atitude.

Cristiana acrescenta que o Estado precisa estar presente nessas comunidades, não apenas com as forças de segurança, mas com políticas públicas de proteção.

“É fundamental também que as mulheres tenham conhecimento que, para além do atendimento pela PM numa situação de flagrante delito, também tem uma rede multidisciplinar que pode apoiá-la e protegê-la”, aponta.

Ela cita os Centros de Referência em Atenção Psicossocial (Cras) e uma alteração da Lei Maria da Penha, que permite que a mulher receba aluguel social com a medida protetiva de urgência.

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