Publicado em 18 de junho de 2023 às 09:29
Gostaria de convidar você a fazer uma viagem ao passado.>
Vamos voltar até 1970. Em março daquele ano, o renomado neurocirurgião americano Robert J. White (1926-2010) realizou uma operação insólita.>
Em um hospital de Cleveland, nos Estados Unidos, White conseguiu, pela primeira vez, conectar a cabeça de um macaco ao corpo de outro.>
A intervenção levou 18 horas. Quando o macaco acordou, ele conseguia ver, ouvir, cheirar e até morder.>
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A notícia trouxe entusiasmo. Podemos dizer que aquele foi o primeiro transplante de cérebro – ou, melhor dizendo, de cabeça – realizado "com sucesso".>
White era profundamente religioso e não foi assessor de bioética médica de dois papas por acaso. >
Por isso, ele preferiu chamar a intervenção de "transplante de corpo". Ele tinha certeza de que o cérebro continha a alma e de que ela poderia ser transferida para o novo receptor.>
Mas o sucesso durou pouco. O macaco morreu depois de alguns dias.>
White prosseguiu com seu trabalho, realizando centenas de outros experimentos. E, até o fim dos seus dias, fantasiou com a repetição da sua façanha em seres humanos.>
Ele chegou até a ter um candidato – um jovem tetraplégico que desejava conseguir um "corpo melhor". Mas o seu sonho nunca chegou a ser realizado.>
White não foi o único a tentar realizar o transplante de cérebro humano, mas certamente foi o mais conhecido. >
É dele o mérito de ter desenvolvido diversos procedimentos cirúrgicos que continuam sendo utilizados até hoje para salvar vidas.>
Mas seu trabalho também foi objeto de duras críticas. White chegou a ser considerado o símbolo da "indústria bruta e cruel da vivissecção", o que pode ter frustrado suas aspirações ao prêmio Nobel.>
Apesar dos incríveis avanços da ciência, ainda não conseguimos transplantar o cérebro. >
O problema reside em uma questão não menos importante: ninguém conseguiu conectar o novo órgão à medula espinhal do corpo receptor.>
De fato, nos experimentos de White, os macacos ficavam paralisados do pescoço para baixo. Isso explicaria por que o seu candidato era tetraplégico – neste sentido, ele não tinha nada a perder.>
Considerado por alguns o "objeto mais complexo do universo", o cérebro estabelece milhões de conexões que controlam todas as funções do nosso corpo. >
E voltar a conectar todo esse emaranhado de ligações com a precisão necessária para recompor os circuitos ainda não está ao nosso alcance.>
Além disso, se conseguirmos fazer o transplante, o que aconteceria com as nossas lembranças, nossas emoções e com tudo aquilo que já aprendemos? >
É uma questão muito importante, já que todos nós concordamos que este órgão tem a chave de acesso à nossa identidade.>
Como, atualmente, não é possível transplantar o cérebro completo com sucesso, talvez possamos controlar nossas expectativas e estudar sua assombrosa capacidade de remodelar-se.>
A resiliência permite que nos adaptemos a circunstâncias difíceis e superemos as adversidades. E o protagonista da nossa história sabe muito a este respeito, pois ele se adapta continuamente às condições do ambiente ao seu redor.>
O cérebro consegue adaptar-se modificando as conexões entre os seus neurônios – formando ligações novas e eliminando outras.>
Esta capacidade é chamada de plasticidade. Ela explica por que conseguimos aprender a resolver uma equação matemática, recordar o nome de um bom vinho ou eliminar as lembranças que já não servem para nós. >
E também nos permite, em certos casos, recuperar-nos de lesões cerebrais.>
Mas a plasticidade cerebral tem um lado B. Ela pode mascarar doenças como o mal de Parkinson ou Alzheimer, que passam anos ou até décadas sem serem percebidas, enquanto o cérebro se esforça para compensar os estragos progressivos causados pelas enfermidades.>
Sabemos que os neurônios alteram suas conexões, mas será que eles se regeneram?>
A maioria das pessoas responderia que, com o tempo, vamos perdendo essas células nervosas e não conseguimos repô-las. >
Este assunto continua suscitando discussões, mas já descobrimos que não é assim.>
Nosso cérebro contém células-mãe que geram novos neurônios todos os dias. >
Este processo se chama neurogênese e sua descoberta revolucionou a neurociência.>
Infelizmente, esta capacidade persiste apenas em regiões muito específicas do cérebro adulto. Uma delas é o hipocampo, que participa do aprendizado e da memória.>
Mas também existem boas notícias. A criação de novos neurônios pode ser estimulada.>
O exercício físico e os alimentos ricos em antioxidantes, por exemplo, favorecem este processo de renovação. E também sabemos que a obesidade, o envelhecimento e as doenças neurodegenerativas o retardam.>
Por isso, ativar a formação de neurônios para que o cérebro se regenere passou a ser um objetivo apaixonante para a ciência.>
E é aqui que podemos retomar o velho sonho do transplante com possibilidades de sucesso.>
A ideia é simples: os neurônios morrem e nós os substituímos por outros. E talvez você se surpreenda ao saber que já o fazemos há décadas.>
Esta intervenção revelou-se um possível tratamento para diversas doenças neurológicas, mas vou falar sobre aquela que conheço melhor: a doença de Parkinson.>
Esta doença é caracterizada pela morte dos neurônios que produzem dopamina. >
Sua ausência gera um caos nos circuitos cerebrais, o que causa uma série de problemas, principalmente motores.>
Para tentar reparar estes danos, foram realizados transplantes de neurônios que produzem esse importante neurotransmissor. E os resultados foram excelentes em animais de laboratórios e em uma série de pacientes, que observaram a melhora dos seus sintomas.>
Mas estes são apenas experimentos. Antes de dar o salto definitivo para a prática clínica, é preciso resolver uma série de problemas.>
Precisamos de uma fonte acessível de neurônios. Atualmente, eles são obtidos a partir de tecido fetal, com as limitações que são naturalmente impostas.>
É preciso ter milhares dessas células para repor todas as que foram perdidas em um único paciente. E, se pensarmos no número de pessoas afetadas, serão necessários milhões de neurônios.>
Neste sentido, as células-mãe oferecem, sem dúvida, grandes oportunidades.>
Precisaremos também conseguir com que os neurônios sobrevivam após o implante e, como se não fosse pouco, que se conectem corretamente com as células vizinhas. É impossível ficar entediado com tanta coisa por fazer.>
Quando chegarmos a este ponto, a capacidade de regeneração cerebral pode não ter ainda cumprido com as expectativas.>
Mas confie na ciência. Como o cérebro, ela também é especialista em resiliência.>
*Jannette Rodríguez Pallares é professora titular de anatomia e embriologia humana da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha.>
Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original em espanhol.>
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