Publicado em 18 de maio de 2023 às 11:06
Apesar da decisão unânime do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pela cassação do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR), juristas divergem sobre se houve correta aplicação da lei da Ficha Limpa.>
Na visão do ex-juiz eleitoral Márlon Reis, considerado o "pai" dessa lei, a decisão do TSE foi "irretocável". >
Já Marco Aurélio de Mello, ministro aposentado do Superior Tribunal Federal (STF), disse à reportagem estar "perplexo" com a pena imposta, enquanto o jurista Miguel Reale Júnior chamou a decisão de "arbitrária".>
Segundo a lei da Ficha Limpa, membros do Ministério Público que tenham sido demitidos ou aposentados compulsoriamente em um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) ficam inelegíveis por oito anos. >
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Além disso, para evitar que promotores e procuradores pedissem demissão antes da conclusão de um PAD para se livrar da inelegibilidade, a lei também estabelece que essas autoridades não podem disputar eleição caso peçam exoneração com um processo em andamento.>
No caso de Dallagnol, não havia PAD aberto quando ele pediu seu desligamento do Ministério Público, em novembro de 2021, visando disputar a eleição de 2022. >
O que havia eram dois processos já finalizados, que resultaram em pena de censura e advertência, e outros 15 procedimentos preliminares contra ele que, em tese, poderiam resultar na abertura de novos PADs.>
Os sete ministros do TSE votaram pela cassação porque entenderam que Dallagnol pediu exoneração antes do prazo limite para poder disputar a eleição, justamente para evitar a abertura de outros processos administrativos disciplinares que poderiam lhe deixar inelegíveis.>
Na visão da Corte Eleitoral, essa conduta do ex-chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba foi uma fraude contra a aplicação da lei da Ficha Limpa.>
"Dallagnol antecipou sua exoneração em fraude à lei. Ele se utilizou de subterfúgios para se esquivar de PADs ou outros casos envolvendo suposta improbidade administrativa e lesão aos cofres públicos. Tudo isso porque a gravidade dos fatos poderia levá-lo à demissão", decidiu o ministro Benedito Gonçalves, relator da ação, em voto acompanhado pelos demais.>
Dallagnol ainda pode recorrer ao STF, mas é incomum que o Supremo derrube decisões do TSE. A Corte Eleitoral é formada por sete ministros, sendo três deles integrantes do STF – no momento, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Nunes Marques.>
Ministro aposentado do STF, Marco Aurélio de Mello criticou a decisão.>
"Particularmente, fiquei perplexo com a situação jurídica. Eu tenho sérias dúvidas quanto à constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, que sinaliza no sentido de que o simples processo administrativo gera a inelegibilidade", disse à BBC News Brasil.>
"E, pelo que eu li hoje no noticiário, sequer haveria um processo administrativo, e o Tribunal Superior Eleitoral acabou simplesmente imaginando a existência e pré-julgando até o que seria o processo administrativo e declarando a inteligibilidade", disse ainda.>
Embora seja crítico da autuação de Dallagnol como procurador, o jurista Reale Júnior também considerou errada a cassação do mandato.>
"O TSE, a meu ver, errou. Sempre fui muito crítico ao Dallagnol e sua posição messiânica, que rompeu com regras obrigatórias do processo. Não gosto do trabalho do Deltan, mas gosto menos do arbítrio. A Lei da Ficha Limpa é bastante precisa ao dizer que quem pede exoneração tendo processos administrativos disciplinares pode ser declarado inelegível. Não era o caso do Deltan, que tinha apurações em andamento", disse em entrevista ao portal Uol o ex-ministro da Justiça (no governo de Fernando Henrique Cardoso) e autor do pedido de impeachment que cassou Dilma Rousseff.>
"Houve uma decisão unânime e acho muito difícil reverter. O Deltan tem outros críticos no Supremo Tribunal Federal com posições políticas fortes. O país caminha totalmente para um campo de abuso de direito. É um absurdo. Isso não vai ajudar de forma alguma que o país encontre um pouco de harmonia e respeito pela autoridade e pelas instituições. Na base do calor, da paixão, o país não prospera", acrescentou Rele Júnior>
Já Márlon Reis disse à BBC News Brasil que a decisão é "irretocável". O ex-juiz participou da elaboração da Lei da Ficha Limpa e da mobilização para aprová-la no Congresso, o que ocorreu em 2010.>
Ainda que não houvesse PAD aberto contra o então procurador no momento de sua exoneração, para ele a decisão do TSE está bem fundamentada em mostrar que o pedido de demissão teve intenção de evitar a abertura de um processo que poderia provocar sua inelegibilidade.>
Nesse sentido, os ministros da Corte avaliaram a gravidade dos procedimentos preliminares que tramitavam contra Dallagnol e o fato de ele ter se exonerado em novembro de 2021, cinco meses antes do prazo previsto na legislação eleitoral – integrante do Ministério Público é obrigado a se demitir do cargo apenas seis meses antes da eleição.>
Outro elemento considerado é que o pedido de exoneração ocorreu dezesseis dias após outro procurador da Lava Jato ser demitido em um processo administrativo disciplinar, por ter pago a instalação de um outdoor em homenagem à força-tarefa.>
Para Reis, a decisão do TSE seguiu o "espírito da lei", que busca evitar que autoridades driblem as hipóteses de inelegibilidade. >
Ele lembra que, no caso de parlamentares, a Lei da Ficha Limpa deixa inelegível aquele que renunciar ao mandato quando há uma representação para abertura de processo de cassação – ou seja, mesmo antes da abertura do processo, quando ele ainda está em análise. >
"O que foi muito bem abordado no voto do relator (ministro Benedito Gonçalves) foi a verificação de que o PAD seria aberto porque as matérias eram muito graves. E com o volume de conhecimento do deputado sobre o tema, ter antecipado o pedido de exoneração para evitar a abertura do PAD poderia ser reconhecido como abuso de direito, fraude à lei ou desvio de finalidade", ressalta.>
Não sua visão, isso "autoriza a decisão do tribunal, porque (se isso não gerasse inelegibilidade) daria o poder imenso para pessoas investigadas, de decidir a hora de sair ou não, justamente para não se tornar inelegível".>
Letícia Kreuz, professora Substituta de Teoria do Estado da UFMG, também vê elementos suficientes para o TSE considerar que houve fraude à lei por parte do deputado. >
Ela considera que alguns trechos da Lei da Ficha Limpa ferem a presunção da inocência, por exemplo ao impedir que pessoa condenada em segunda instância (ou seja, que ainda podem recorrer da sentença) fiquem impedidas de disputar eleição.>
No entanto, a professora defende as regras mais duras para inelegibilidade no caso de condutas indevidas de juízes e de membros do Ministério Público, justamente para evitar que autoridades que trabalham com a aplicação das leis atuem de forma política, mirando uma possível eleição.>
Na sua visão, seria importante, inclusive, que o Congresso aprovasse uma quarentena mais longa que forçasse essas autoridades a se afastarem dos seus cargos com uma antecedência maior que o limite atual de seis meses.>
"São pessoas que estão em cargos com poderes e funções muito importantes, muito específicos dentro dessa estrutura constitucional e, sendo assim, a elas recaem também alguns deveres que diferem dos deveres que outros servidores públicos terão, inclusive alguns ônus quanto a inelegibilidade", explica.>
O objetivo, nota a professora, é impedir que essas pessoas possam "instrumentalizar o cargo" politicamente.>
"Vamos dizer que essas autoridades tivessem uma atuação política ao longo do cargo e que isso importasse em processos administrativos. E aí elas, simplesmente, após vários atos que contrariam aquilo que se espera do dever funcional, deixam o cargo e concorrem a um cargo eletivo. Nesses casos, elas se beneficiariam justamente do mau comportamento na condição de magistrados e membros do Ministério Público que ensejou", avalia a professora.>
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