Publicado em 18 de novembro de 2025 às 16:05
O jogo do bicho saiu das esquinas e cadernetas clandestinas para as telas do streaming — e virou um fenômeno de audiência.>
Os Donos do Jogo, lançado em outubro pela Netflix (e com segunda temporada já confirmada), alcançou o primeiro lugar entre as séries de língua não inglesa mais assistidas da plataforma ao trazer para a ficção a disputa entre famílias que detêm o comando dos jogos de azar no Rio de Janeiro.>
As histórias das dinastias bicheiras já tinham ganhado o fascínio do público em 2024 com Vale o Escrito, que se consagrou comoo documentário mais visto da Globoplay ao longo dos dez anos da plataforma.>
A contravenção nunca esteve tão presente na cultura pop. Mas como uma antiga rifa de zoológico, proibida por lei, e que existe há 133 anos, se tornou uma das maiores loterias ilegais do mundo?>
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O tema foi objeto de estudo do cientista político Danilo Freire durante seu doutorado em Economia Política no King's College de Londres.>
Usando ferramentas da economia, ele chegou a conclusões inéditas sobre as regras informais e mecanismos de força que ajudaram essa bolsa ilegal de apostas a sobreviver a mais de 30 governos no Brasil, de ditaduras a democracias.>
"Tentei analisar o jogo do bicho como uma empresa capitalista, pois, antes de tudo, é isso o que ele é. Foi criado para gerar lucro", contou o pesquisador em entrevista para a BBC em 2017.>
A teoria da escolha racional, uma das ferramentas da economia empregadas por Freire, assume que as pessoas pensam em termos de custo-benefício. >
Elas tentam sempre melhorar seu bem-estar, embora não tomem as melhores decisões o tempo todo nem consigam prever o futuro. Mas fazem o possível para aumentar suas oportunidades.>
"O jogo do bicho é um negócio, e me parece razoável que os bicheiros sejam racionais. Se não o fossem, é improvável que tivessem conseguido acumular a fortuna e influência que têm", afirma. >
"São pessoas com ótimas habilidades comerciais e pensamento estratégico para negociar, legalmente ou não, com políticos e policiais, entre outros", acrescenta Freire, que hoje é professor assistente visitante no Departamento de Data Science and Decision da Emory University, nos Estados Unidos.>
O embrião do jogo do bicho surgiu em 1892, quando o barão João Batista Drummond teve uma ideia para atrair visitantes a seu zoológico em Vila Isabel, zona norte do Rio.>
O local tinha espécies exóticas e belas vistas da cidade, mas faltava público. Entre as novas sugestões de entretenimento para o local, uma se destacou: uma rifa.>
Pela manhã, o barão escolhia um animal em uma lista de 25 bichos e colocava sua imagem numa caixa de madeira na entrada no zoo. Quem participava ganhava um tíquete com uma estampa de algum desses 25 animais.>
Ao final do dia o barão abria a caixa e mostrava a figura. O vencedor levava 20 vezes o valor da entrada, o que já superava, por exemplo, a renda mensal de um carpinteiro da época.>
"Poder escolher o animal foi uma ótima ideia, pois tornou o jogo muito mais interessante. Eventualmente isso fez com que as pessoas passassem a interpretar sonhos, placas de carro e números, de maneiras muito divertidas também", explica o pesquisador. >
A loteria foi batizada de jogo de bicho e logo virou febre — bilhetes começaram a ser vendidos não apenas no zoológico, mas em lojas pela cidade. A repressão não demorou — autoridades criminalizaram a atividade ainda no final dos anos 1890, pelo bem da "segurança pública".>
Freire aponta quatro facetas do Brasil do final do século 19 que ajudam a explicar a emergência do jogo do bicho:>
1) População urbana crescente e excluída do mercado de trabalho;>
2) Fluxo de imigrantes com redes familiares que incentivavam a participação no comércio;>
3) Aumento na circulação de capital, motivada por fatores como a abolição da escravatura e a industrialização nascente;>
4) Sistema judicial fraco na repressão criminal.>
"As cidades começaram a crescer, e o fim da escravidão e a entrada de imigrantes no país aumentou o contingente de pobres urbanos. O mercado ilegal era a única opção de renda para muita gente", explica o cientista político.>
"Além disso, embora o jogo fosse ilegal, a lei nunca foi aplicada com muito rigor. Até hoje o jogo é considerado apenas uma contravenção, um delito menor (prevê quatro meses a um ano de prisão). Assim, a punição não era forte o suficiente para amedrontar os bicheiros — os lucros compensavam o risco de ser detido.">
No jogo do bicho, cada um dos 25 animais corresponde a quatro números: do avestruz (01 a 04) à vaca (97 a 00). Há diferentes opções de apostas, e o prêmio varia com a possibilidade de vitória.>
Em geral, seu animal ganha se os dois últimos números do milhar anunciado na Loteria Federal correspondem ao número do bicho. Por exemplo: se a loteria sorteou o número 3350, o vencedor é o galo (49 a 52).>
É possível também apostar no milhar (a chamada aposta "na cabeça"): escolher os quatro números e torcer para os quatro saírem no primeiro sorteio. É a jogada mais alta: costuma pagar R$ 4 mil por R$ 1 apostado.>
"Os bicheiros tentam expandir seus negócios e oferecer algo que atraia os apostadores. Quando uma aposta dá certo em um lugar, provavelmente ela será copiada pelos vizinhos e testada em outros mercados", afirma Freire.>
A estrutura do jogo tem três níveis de hieraquia. Os bicheiros ou anotadores são a face mais visível do negócio: vendem as apostas com seus bloquinhos e carimbos. Os gerentes são contadores que cuidam dos bicheiros de determinada área, intermediando o contato e o fluxo de dinheiro aos banqueiros (também conhecidos como bicheiros), a elite financeira do jogo.>
Um estudo da Fundação Getúlio Vargas estimou que o jogo do bicho tenha arrecadado de R$ 1,3 bilhão a R$ 2,8 bilhões no país em 2014 — número que alguns consideraram subestimado.>
Nos anos 1990, empregaria 50 mil pessoas só na cidade do Rio de Janeiro - a Petrobras, por exemplo, tem 68 mil empregados.>
Mas como esse negócio conseguiu se diferenciar de outros mercados ilegais e se tornar lucrativo a longo prazo? >
Em tese, tudo conspirava para dar errado: quem iria dar dinheiro a um contraventor e esperar que ele pagasse de volta?>
"Quem ganha e não recebe não pode reclamar no Procon, abrir um processo na Justiça ou chamar a polícia", lembra Freire.>
Além disso, sorteios eram realizados em locais escondidos (normalmente as "fortalezas", os QGs dos banqueiros) e a prática tinha fama de vício moral e forte oposição da Igreja Católica.>
O pesquisador identifica dois mecanismos que reduziram o estigma em torno do jogo: a construção de uma forte reputação de honestidade e a oferta de incentivos específicos para clientes e funcionários.>
A confiança veio com medidas como a publicação dos resultados dos sorteios à vista de todos (em postes, por exemplo), pagamentos em dia e uma fórmula de multiplicador fixo para os prêmios - se um apostador ganhar o menor prêmio, por exemplo, receberá 18 vezes o investimento, independentemente do valor da aposta.>
"Cada apostador já sabe de antemão o quanto pode ganhar. É mais fácil para as pessoas entenderem e deixa o bicheiro numa situação em que todos sabem o quanto ele tem que pagar", afirma Freire.>
Desde os anos 1950, quando os banqueiros do bicho transferiram suas operações para as "fortalezas", os sorteios saíram dos olhos do público, o que poderia reduzir a confiança e os lucros da atividade.>
O negócio, contudo, resolveu esse problema de "assimetria de informações" ao começar a usar os números vencedores da Loteria Federal em seus sorteios, pegando carona na credibilidade da bolsa oficial de apostas.>
Outra estratégia para criar boa reputação, aponta Freire, foi o financiamento de atividades culturais, sobretudo as escolas de samba do Rio.>
"Elas dão empregos a moradores, geram lucros para as comunidades, aumentam o turismo no Rio e, claro, acabaram virando símbolo nacional", afirma o pesquisador, que cita ainda a fundação por banqueiros do bicho, em 1985, da Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro).>
"As escolas de samba começaram a receber apoio estatal em meados dos anos 1930. Mas o governo intervia em sambas e desfiles. O bicho deu certa liberdade às escolas, e permitiu desfiles mais elaborados e que as escolas se profissionalizassem", completa.>
O negócio ilegal teve que lidar ainda com problemas comuns a qualquer empresa: funcionários preguiçosos, patrões carrascos, falta de dinheiro em caixa. >
Como garantir, por exemplo, que os empregados das bancas não embolsassem dinheiro de apostas? >
Há, naturalmente, ameaça de retaliação violenta, mas não é algo comum.>
Uma tática mais frequente, diz Freire, é a oferta de "benefícios coletivos", como a segurança privada proporcionada por pistoleiros e policiais corruptos, pequenos empréstimos sem juros para despesas inesperadas, como tratamento de saúde, e gorjetas de apostadores.>
"Seria como se os banqueiros do bicho pagassem bônus e compartilhassem parte dos lucros para que os funcionários se esforcem. É algo que várias empresas também fazem", aponta.>
Há ainda o risco de "quebra da banca" — quando o negócio não consegue pagar os prêmios em caso, por exemplo, de uma aposta muito alta. >
A solução para possíveis problemas de liquidez foi a "descarga": bicheiros menores fazem um "seguro" ao pagar parte das apostas a um bicheiro maior, que garante apostas altas caso seja necessário.>
"Bancos e empresas fazem a mesma coisa com contratos de risco compartilhados, operações de hedge e seguros. O mecanismo é o mesmo", explica Freire - o mecanismo, porém, tende a enriquecer os bicheiros mais poderosos.>
O jogo do bicho também cresceu na colaboração com autoridades públicas. >
O cientista político diz que essas parcerias criminosas ganharam fôlego na ditadura e se mantiveram no atual período democrático. >
Políticos, por exemplo, se beneficiam de doações via caixa 2 e do acesso dos bicheiros a comunidades pobres.>
Atualmente, tramita no Senado um projeto de lei para legalizar cassinos, jogo do bicho, bingos e caça-níqueis sob algumas condições.>
O texto foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 2022 e pela Constituição e Justiça (CCJ) em 2024.>
A votação no Senado estava prevista para acontecer em julho, mas foi adiada diante da resistência de muitos parlamentares. >
O texto prevê que poderia ser credenciada para explorar o jogo do bicho uma empresa a cada 700 mil habitantes em cada Estado e no Distrito Federal. Roraima, único Estado com população abaixo desse patamar, poderia ter só uma empresa.>
O projeto regulamenta ainda o aluguel de máquinas caça-níqueis, com a condição de que haja registro oficial delas e auditorias periódicas.>
A proposta prevê também a criação de dois impostos sobre o setor, cuja arrecadação seria dividida entre União, Estados e municípios.>
O tema divide opiniões. >
Defensores do projeto de lei dizem que não faz sentido o Brasil permitir jogos online, como apostas esportivas e cassinos, e abrir mão de atividades presenciais, que poderiam gerar mais empregos e arrecadação.>
Sites de apostas esportivas foram autorizados pelo Congresso a funcionar em 2018, durante o governo Michel Temer (MDB).>
Esses sites ficaram sem regulamentação por alguns anos, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), que não pareceu querer mexer com o assunto.>
No governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a regulamentação foi aprovada em 2023, com o objetivo de alavancar a arrecadação e criar regras para seu funcionamento. Foi nesse momento, com a aprovação da Lei das Bets, que também foram legalizados cassinos online.>
Já críticos ao projeto dizem que legalizar mais atividades do ramo vai agravar problemas como vícios em jogos e endividamento, além de favorecer a lavagem de dinheiro pelo crime organizado.>
Este texto foi publicado originalmente em junho de 2017 e atualizado em novembro de 2025.>
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