Publicado em 6 de maio de 2020 às 14:44
O vírus Sars-CoV-2, que já infectou mais de 3 milhões de pessoas e causou mais de 200 mil mortes no mundo, provavelmente saltou dos morcegos para o pangolim antes de infectar os humanos. >
Para ajudar a prever e impedir novas crises como esta que vivemos, cientistas do mundo todo têm buscado identificar vírus encontrados em outros animais com potencial zoonótico, ou seja, que poderiam pular de animais para o homem.>
Uma iniciativa global pretende mapear mais de meio milhão de vírus presentes na natureza que podem ser transmitidos para o ser humano. Coordenada por Dennis Carroll, virologista que previu a pandemia em documentário veiculado na plataforma Netflix, o Global Virome Project quer buscar os vírus antes que eles nos encontrem.>
O objetivo é dar as ferramentas para que a comunidade global passe a ter uma abordagem proativa em relação às doenças emergentes em vez ações de apenas reagir quando a epidemia já está instalada.>
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Carroll esteve à frente nos últimos nove anos no Programa de Ameaças de Doenças Infecciosas (Predict, na sigla em inglês), que buscou o potencial de doenças virais se tornarem epidemias em mais de 30 países, entre eles o Brasil, que foi apontado como um "hotspot" para a emergência de doenças infecciosas.>
Gustavo Goes, pós-doutor do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas e da Plataforma Científica Pasteur-USP, explica que para ser um "hotspot" um país ou região deve possuir algumas características específicas, como uma elevada biodiversidade de mamíferos, uma alta perda de biodiversidade e um alto potencial de contato com esses animais silvestres.>
"Nós somos o país com a maior diversidade de morcegos do mundo: 182 das cerca de 1.400 espécies que existem ocorrem no Brasil, e todos os morcegos estão cheios de vírus com potencial zoonótico", diz ele, que trabalhou na última década com coronavírus endêmicos de humanos.>
Em seu doutorado, Goes estudou vírus de morcegos que podem causar doenças e agora expandiu sua pesquisa para os vírus do tipo Sars (Síndrome respiratória aguda grave).>
Goes analisou mais de 1.300 amostras de diferentes espécies de morcegos e identificou 24 genótipos de vírus de importância para doenças emergentes, dos quais quatro serão analisados quanto ao seu potencial infeccioso.>
Conhecendo os genomas desses vírus, o biólogo sequenciou apenas o fragmento do RNA viral responsável por formar a proteína S (de spike, ou espinho, em inglês), que é a porta de entrada do vírus para a célula humana.>
Ele criou então pseudotipos virais moléculas que imitam o spike e marcou essas moléculas com fluorescência para infectar células de diferentes linhagens de animais in vitro e analisar em quais delas os patógenos têm sucesso de entrada.>
Clarice Weis Arns, professora do laboratório de Virologia Animal do Instituto de Biologia da Unicamp, trabalha com coronavírus de importância veterinária em animais domésticos e agora pesquisa também vírus tipo Sars.>
As amostras são coletadas de morcegos na natureza, por meio de cotonetes inseridos na região oro-nasal e retal, e depois analisadas em laboratório. Para identificar os vírus, os pesquisadores usam a metagenômica, método que "pesca" em uma sopa imensa de nucleotídeos o material genético dos vírus de interesse.>
Arns pretende analisar também a evolução dos coronavírus usando dados do GeneBank, uma espécie de biblioteca genética virtual.>
Comparando os genomas dos vírus encontrados nos morcegos brasileiros com os de outros países, a expectativa é obter uma árvore filogenética dos coronavírus para identificar a origem e evolução desses parasitas na natureza.>
"Esse conhecimento evolutivo é muito importante para identificar os vírus que infectam os seres humanos mas também aqueles que podem levar a surtos em animais domésticos e afetar a produção", afirma.>
Na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, o virologista Paulo Eduardo Brandão pesquisa coronavírus e como eles evoluem em seus hospedeirosde bovinos a morcegos e seres humanos.>
Brandão também avalia o que acontece quando o vírus muda de um hospedeiro para outro, como qual parte do genoma sofre mutação e em qual processo celular ele atua. A partir da análise da evolução desses vírus nas diferentes populações, Brandão avalia quais os vírus que podem saltar entre espécies. O potencial infeccioso desses vírus também é analisado: se eles têm sucesso na ligação com receptores de células de diferentes animais e, uma vez dentro das células, quais são os processos moleculares e de resposta do organismo envolvidos.>
E por que os morcegos? Segundo o virologista, esses animais se dão muito bem com os vírus que hospedam devido à sua resposta imune, que mantêm os vírus com uma baixa carga viral mas não é tão intensa a ponto de causar uma reação inflamatória.>
"É por isso que o morcego é um excelente alvo para buscar novos vírus. Além disso, os morcegos existem há bastante tempo, então existe coevolução desses vírus com morcegos", completa.>
O Global Virome Project, no entanto, foi alvo de críticas no meio científico, que veem um melhor uso dos recursos para medidas de vigilância epidemiológica.>
Em artigo publicado na revista científica Nature, o virologista Edward Holmes afirma que embora "estudos genômicos amplos de vírus na vida selvagem posssam trazer avanços no conhecimento da evolução e diversidade de vírus, (...) eles serão de pouca importância prática no que diz respeito ao entendimento e à mitigação de doenças emergentes".>
O biólogo Atila Iamarino afirma que as duas frentes são complementares, e não excludentes. Para ele, descobrir um vírus novo em humanos pela primeira vez é o pior cenário. "Conhecê-los antes é importante também para desenhar os testes.">
Pesquisas que incentivam o conhecimento da biodiversidade, porém, sofrem com falta de financiamento e são criticadas por serem ciência básica, supostamente sem aplicação, segundo Paulo Brandão.>
"Se eu tenho o genoma viral completo é possível pesquisar quais os possíveis tratamentos ou vacinas que podem atuar e que vão ser efetivas no combate a epidemias. Todo mundo fala: 'Para que você quer pesquisar vírus em morcego? Qual a aplicação?'. Agora está aqui a aplicação", completa.>
Goes diz o mesmo. Sua bolsa de pós-doutorado para estudar coronavírus de morcego foi negada sete vezes pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) antes de ser aprovada em agosto passado, com a justificativa de não ter aplicação conhecida.>
"A questão não é se vamos ter mais uma epidemia de vírus que saltou na natureza para humanos. A questão é quando. O contato mais próximo entre estes animais com humanos e animais domésticos tem importante papel nesse processo e vemos uma aceleração destes eventos nos últimos 25 anos", finaliza.>
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