Publicado em 7 de maio de 2025 às 10:38
A partir desta quarta (7/5) o mundo estará na expectativa pelo que acontece dentro de uma igreja de 41 metros de comprimento, 13,5 metros de largura e 21 metros de altura no coração do Vaticano. >
Trata-se da Capela Sistina, tradicional palco do conclave que elege o próximo papa a comandar a Igreja Católica.>
O espaço tem esse nome em homenagem ao papa Sisto 4º (1414-1484), que determinou sua construção entre 1473 e 1481 — antes, o local se resumia às ruínas da chamada Capela Magna. Mas o que faz deste lugar uma pérola não só para os católicos mas para todos os apreciadores das artes são as impressionantes pinturas murais, afrescos que revestem suas paredes e o teto abobadado.>
São trabalhos de diversos nomes da renascença italiana, como Sandro Botticelli (1445-1510), Rafael Sanzio (1483-1520) e Pietro Perugino (1446-1523). Mas nenhum deles, contudo, tem seu nome tão associado à Capela Sistina quanto o do florentino Michelangelo Buonarrotti (1475-1564).>
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Ele trabalhou no local em dois momentos. De 1508 a 1512, pintou as imagens que adornam os 460 metros quadrados do teto da capela, representando as histórias do livro do Gênesis, o primeiro da Bíblia. Chamado de volta, de 1536 a 1541 dedicou-se à obra Juízo Final, com quase 170 metros quadrados na parede atrás do altar.>
"Só pode compreender perfeitamente a grandiosidade desta obra quem pôde vivenciar esta experiência de imersão na arte em uma visita à Capela Sistina", diz à BBC News Brasil a antropóloga e historiadora Lidice Meyer, professora na Universidade Lusófona, em Portugal. >
"Quem entra na capela sente-se como que submerso em uma história milenar que nos cerca por todos os lados e acima das nossas cabeças.">
O historiador da arte Christiaan Santini, pós-graduado em patrimônio cultural da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, contextualiza à BBC News Brasil, que "se Jesus está em toda a parte" na arte italiana desta época, Michelangelo ultrapassou fronteiras com as imagens da Capela Sistina. >
"Ele representa como homem não só o filho, mas também o pai, o Criador. E o faz com um corpo maravilhoso, perfeito, atlético, usando portanto o cânone de beleza grego, outro pilar sobre o qual se funda a cultura ocidental", comenta.>
"De certo modo, Michelangelo, ao pintar Deus, aperfeiçoa a arte grega por meio da inspiração cristã", analisa ele. "Uma síntese de tudo o que a arte havia sido até aquele momento. E uma fonte de inspiração para tudo o que viria depois, pelo menos até [o espanhol Pablo] Picasso [(1881-1973)].">
Curiosamente, hoje se sabe que o artista não queria fazer esse trabalho. Foi praticamente obrigado. Em 1509 ele escreveu uma carta-poema a um amigo, lamentando que pintar a capela era uma "tortura" que o obrigava a ficar "curvado aqui como um gato na Lombardia". >
"Meu pincel, acima de mim o tempo todo, pinga tinta, então meu rosto vira um belo chão para excrementos", reclamou ele, ressaltando que "cada gesto que faço é cego e sem objetivo", "minha coluna está toda emaranhada por se dobrar sobre si mesma" e "minha pintura está morta" porque "não estou no lugar certo — não sou pintor".>
Ele realmente não se via como qualificado para a pintura. Considerava-se um escultor.>
Papa Júlio 2º (1443-1513) era um admirador do seu trabalho. Conforme conta à reportagem a artista plástica Keka Consiglio, estudiosa da obra do florentino, Michelangelo então trabalhava nas esculturas tumulares que deveriam enfeitar a futura sepultura do papa. Este, então, cancelou a encomenda e determinou que o artista se incumbisse da capela.>
"Michelangelo ficou indignado. Montou em seu cavalo e voltou para sua Florença. Jurou nunca mais trabalhar para o papa", conta Consiglio. Em uma época que desafiar a autoridade de um sumo pontífice era inadmissível, não teve jeito: os guardas do Vaticano foram até lá e o arrastaram de volta à empreitada.>
De acordo com a especialista, Michelangelo conseguiu impor uma condição: liberdade total para definir as pinturas. "Michelangelo revolucionou a pintura ao aplicar princípios escultóricos à pintura de afresco. Suas figuras são tridimensionais, com corpos musculosos, poses complexas e dramatismo anatômico, uma fusão de arte, ciência e fé", afirma ela.>
São obras que permitem tantas interpretações que faltam consensos até hoje, cinco séculos depois. "A obra de Michelangelo na Capela Sistina é muito conhecida, estudada e controvertida também", ressalta à BBC News Brasil a cientista da religião Wilma Steagall De Tommaso, professora no Museu de Arte Sacra de São Paulo e coordenadora do grupo de pesquisa A Palavra é Imagem: Arte Sacra Contemporânea, História e Religião, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).>
Daí então resultou toda a complexidade artística, filosófica e teológica da obra imagética criada por Michelangelo. No teto, a composição traz nove painéis centrais com episódios do livro do Gênesis. A cena mais famosa é A Criação de Adão, umas das obras mais icônicas da arte mundial.>
Já na obra posterior, a que fica ao fundo do altar, Michelangelo representou o Juízo Final, ou seja, a ideia cristã de que haverá um julgamento derradeiro dos vivos e mortos para o estabelecimento definitivo do Reino de Deus.>
Consiglio analisa esse trabalho como um compilado de questões existenciais e espirituais, ressaltando que a "famosa imagem da Criação de Adão, com os dedos de Deus e do homem quase se tocando, tornou-se um ícone da condição humana e do elo entre o divino e o mortal".>
Ela frisa que Michelangelo conseguiu expressar a tensão "entre fé e razão", o conflito "entre corpo e espírito" e, ao mesmo tempo exaltar a mente, a ciência, a busca por sentido. "E, mais incrível: sem palavras. Tudo está ali, em cores […] que nos fazem parar, olhar para cima e refletir", pondera.>
Interessante que, de acordo com pesquisadores, o plano original do Vaticano para ilustrar o teto não era esta revisita ao primeiro livro da Bíblia. Mas, sim, uma representação dos primeiros seguidores de Jesus segundo os textos dos evangelhos.>
"O papa buscava uma pintura dos 12 apóstolos. Só que o próprio gênio Michelangelo buscou algo maior porque ele acreditava que pintar apenas os apóstolos naquele espaço muito grande seria pobre, não haveria o que colocar", conta à BBC News Brasil o pesquisador de arte Jack Brandão, diretor do Centro de Estudos Logo-imagéticos Condes-Fotós e editor da revista acadêmica Lumen et Virtus.>
Meyer lembra que muitos veem nesse gesto um ato de rebeldia do artista, principalmente porque, ao transportar a narrativa do Novo para o Velho Testamento, ele substituía a ideia dos primeiros seguidores de Jesus por histórias representativas dos ancestrais judaicos do cristianismo — uma "condenação ao tratamento dado pela Igreja Católica à fé judaica", ilustra ela. >
"Outros acadêmicos acreditam que isso se trata de uma forma particular de humor de Michelangelo", pontua. "Independentemente de sua real intenção, qualquer um desses símbolos poderia facilmente tê-lo marcado como herege, causando sua morte.">
Há críticas à Igreja presentes no trabalho, conforme interpretam analistas. "É verdade e há cada vez mais consenso entre estudiosos de que Michelangelo usou símbolos, metáforas e imagens anatômicas para inserir mensagens ocultas", diz Consiglio. >
"Isso não significa que tudo seja mensagem secreta, em tom conspiratório: trata-se de um artista profundo, com conhecimento em anatomia, filosofia, teologia e ciência.">
Entre essas críticas, ela ressalta que há certas poses e gestos, como o Cristo do Juízo Final, com braço erguido de forma brusca, que seriam uma indignação diante do "dogmatismo e à ideia de condenação". Ela diz que em vez de um Cristo "compassivo", Michelangelo pintou um Cristo "implacável", mais parecido com um "juiz romano".>
Outro ponto lembrado pela pesquisadora foi a presença das sibilas pagãs, profetisas não-cristãs, que foram pintadas ao lado de profetas bíblicos. Isso foi um movimento ousado para a época. "Michelangelo sugere que a sabedoria e a verdade não pertencem exclusivamente à Igreja, mas podem vir de outras culturas e tradições", comenta Consiglio.>
Segundo ela, a Igreja nunca se preocupou em apagar ou alterar essas mensagens porque na época não compreendia a totalidade das mensagens cifradas e, posteriormente, com Michelangelo já consagrado, entendeu-se que era preciso respeitar e reconhecer a genialidade de seu trabalho, que passou a ser considerado "como um milagre de técnica e inspiração divina".>
"Nos séculos seguintes, a própria Igreja passou a valorizar a liberdade artística e a profundidade simbólica de Michelangelo. Hoje, o Vaticano se orgulha da obra e a apresenta como um dos maiores tesouros do cristianismo", diz Consiglio.>
"Esta conduta da Igreja fez com que um riquíssimo patrimônio artístico chegasse até nós", ressalta a artista Bueno.>
Para o historiador Santini, contudo, é preciso tomar cuidado com o peso de tais interpretações. "Muitas histórias e lendas nasceram em torno do mito de Michelangelo. É natural que seja assim: a Capela Sistina é a capela papal do Palácio Apostólico […]", lembra ele.>
Em seu entendimento, em geral essas histórias não são sustentadas por fontes históricas e "nenhuma pode ser confirmada com certeza". "Tudo o que ele pintou foi certamente examinado e sugerido por teólogos a serviço do papa e da Cúria e é improvável que Michelangelo, embora crítico de certos aspectos da Igreja da época, tenha incluído imagens que contivessem críticas diretas å política ou à ortodoxia vigente", diz Santini.>
No que tange às possíveis críticas ao catolicismo, a cientista da religião De Tommaso lembra que houve contextos diferentes em cada uma das duas fases de Michelangelo na Capela Sistina. Quando foi contratado para pintar o Juízo Final, o acordo havia sido feito com o papa Clemente 7º (1478-1534). "Ele conhecia bem Michelangelo", pontua. "E ficaria atento para evitar erros da manifestação da fé cristã como haviam ocorrido no teto da capela.">
"Isso porém não aconteceu porque, logo após assinar o contrato, Clemente morreu", acrescenta ela. O substituto foi Paulo 3º (1468-1549). "Este não conhecia tão bem assim Michelangelo e deixou-o livre para realizar sua obra. Nessa época, Michelangelo já era famoso, rico e um rebelde furioso com o sistema", diz a professora.>
Os conhecimentos de Michelangelo acerca da anatomia humana eram impressionantes para a época e não se limitavam apenas aos formatos dos corpos. >
Há diversos sinais na Capela Sistina de que o florentino sabia como eram os órgãos mais importantes. "Um exemplo bem conhecido é a imagem de Deus na Criação de Adão na qual o formato da vestimenta com a qual Deus aparece a Adão é notavelmente semelhante ao de um cérebro humano", pontua Meyer.>
"Uma forma craniana também é visível no formato incomum do pescoço e do tronco de Deus em A Separação da Luz das Trevas, que neurocirurgiões modernos afirmam ter uma forte semelhança com o tronco cerebral e até mesmo com a coluna vertebral. Como Michelangelo possuía um grande conhecimento de anatomia humana, estas imagens podem refletir tanto seu conhecimento como uma série de implicações metafóricas", completa ela.>
Detalhados estudos recentes cada vez mais corroboram essa perspectiva. Em 1990, o médico Frank Meshberger (1947-2020), estudioso da arte e também pintor, foi o primeiro a descrever cientificamente, em artigo publicado pelo Journal of the American Medical Association, a notável perícia com que Michelangelo inseriu formas do interior do corpo humano nas pinturas da capela.>
"A mais famosa [teoria acerca desse tema] está justamente na cena mais conhecida: a Criação de Adão. A figura de Deus e dos anjos ao seu redor está contida em uma estrutura […] que parece ter a forma de um cérebro humano", diz o historiador Santini, referindo-se a esse estudo de 35 anos atrás. >
"Não acredito muito nessa teoria, mas gosto bastante dela. Afinal, quando Deus toca com o dedo Adão, dá a ele justamente isso: a razão, o intelecto, a consciência, a alma, o livre-arbítrio.">
Em 2010, pesquisadores da Johns Hopkins University School of Medicine avançaram nessas análises, apontando para desenhos do cérebro, da medula e dos nervos ópticos nas pinturas, elementos estes que Michelangelo teria camuflado na representação de Deus.>
Brandão acredita que Michelangelo, assim como outros artistas da Renascença, deva "ter participado de necropsias" clandestinas, já que exames em cadáveres não eram aceitos pela Igreja na época.>
Na visão da artista plástica Mari Bueno, especializada em arte sacra, tais interpretações "são algumas entre muitas feitas a partir da arte desse gênio, mas ele não deixou nada escrito ou declarado sobre essas supostas mensagens secretas", conforme ela pontuou à BBC News Brasil.>
Se a Igreja nunca pareceu se incomodar com as mensagens cifradas deixadas pelo gênio do Renascimento, um detalhe não passou despercebido: a nudez dos personagens. "Muitos personagens do Juízo Final haviam sido pintados por Michelangelo completamente nus. E isso foi considerado inadequado desde o início mas, após a morte do artista, a situação se tornou insustentável", situa Santini. >
"O clima havia mudado e o Concílio de Trento [realizado entre 1545 e 1563] havia estabelecido regras muito rígidas sobre a arte sacra.">
Em 1565 um discípulo de Michelangelo, o artista Daniele da Volterra (1509-1566) foi encarregado pelo Vaticano de fazer alguns ajustes, "corrigindo" algumas "figuras excessivamente expostas", conta Santini, ressaltando que aquela era uma "solução diplomática" encontrada pela cúpula da Igreja para manter a obra do florentino.>
Volterra ficaria conhecido pelo apelido de "braghettone" — algo como "aquele das calças", "o das ceroulas". "Colocou uma espécie de roupa de baixo na figura de Jesus no Juízo Final, que, originalmente, estava completamente nu", exemplifica o especialista. "Cobriu várias outras figuras e chegou até a mudar a posição de algumas delas, cujas poses poderiam sugerir atitudes lascivas ou escandalosas… Não me faça entrar em detalhes.">
Conhecido pelo forte temperamento, Michelangelo teria deixado nos afrescos uma série de "homenagens" a seus desafetos. "Ele parece ter sido uma pessoa muito vingativa", salienta Brandão.>
"Michelangelo tinha personalidade intensa, orgulhosa e, muitas vezes, rancorosa", acrescenta Consiglio. "E, como todo gênio da Renascença, ele se vingava com arte.">
De acordo com sua pesquisa, é possível reconhecer algumas dessas personalidades ali retratadas. O mais notório foi Biagio da Cesena (1463-1544), padre que atuava como mestre de cerimônias do Vaticano no período. Quando Michelangelo ainda nem havia terminado o trabalho, o sacerdote já criticava sua obra. Chegou a afirmar que "aquelas figuras nuas não deveriam estar em uma igreja, mas sim em tavernas ou banhos públicos".>
Michelangelo teria então respondido pintando Cesena como Minos, o juiz dos mortos no inferno, com orelhas de burro e uma cobra enrolada em seu corpo, mordendo suas genitálias.>
O historiador Santini reconhece que se trata de uma das histórias mais conhecidas a respeito da Capela Sistina. "A lenda diz que quando Biagio da Cesena levou suas queixas ao papa, este respondeu com humor: 'posso fazer pouco a respeito, já que não tenho jurisdição sobre o inferno'", comenta. "Improvável, mas bastante engraçado.">
Outro desafeto do artista que teria sido eternizado ali foi o poeta Pietro Aretino (1492-1556). Conta-se que ele tentou chantagear Michelangelo pedindo cópias das imagens da Sistina. Diante da recusa deste, o poeta passou a espalhar textos ofensivos contra o artista. "Alguns estudiosos acreditam que uma das figuras decadentes do inferno, um corpo contorcido e caído, olhando para trás, seria uma caricatura de Aretino", diz Consiglio.>
Há ainda de forma geral críticas a cardeais do Vaticano. "Muitos estudiosos identificam expressões zombeteiras, corpos grotescos ou deformados como críticas a padres hipócritas. As figuras em queda livre representariam, então, a corrupção do clero e o medo do castigo", contextualiza a pesquisadora e artista.>
O próprio papa Paulo 3º também teria sido vítima dos pincéis de Michelangelo. "Embora tenha apoiado a obra, ele tentava controlar Michelangelo, impondo limites e sugerindo mudanças, enfurecendo o artista", pontua a estudiosa. Alguns interpretam que a decisão de pintar Cristo no Juízo Final como uma figura musculosa e sem barbas, rompendo com a iconografia oficial, seria uma afronta ao papa, uma espécie de provocação.>
Por fim, Michelangelo teria incluído também um autorretrato na Capela Sistina. No Juízo Final há a imagem de São Bartolomeu segurando sua própria pele esfolada, em um retrato do que teria sido seu martírio. "Muitos acreditam que o rosto na pele seja um autorretrato de Michelangelo, expressando sua angústia e vulnerabilidade diante do julgamento de Deus", diz Consiglio. Na interpretação dela , seria como se ele dissesse que estava se sentindo assim diante "da instituição religiosa".>
"Nenhuma fonte confirma isso, mas é verdade que artistas renascentistas, por não poderem assinar obras murais, já que não eram os proprietários delas, muitas vezes usavam retratos seus como assinatura", comenta o historiador Santini.>
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