Publicado em 16 de maio de 2024 às 05:20
O relógio marcava 18h30 e a escuridão era completa na cidade completamente alagada de Eldorado do Sul, no Rio Grande do Sul. Por conta das enchentes, toda a distribuição de energia foi interrompida.>
No telefone, a voz desesperada da filha pede para que os bombeiros resgatem a mãe dela, que está acamada e inconsciente dentro da casa completamente alagada. >
Cada minuto era crucial porque o nível da água subia constantemente e deixava a situação ainda mais dramática.>
A filha não estava no mesmo imóvel, mas acionou o resgate após ouvir da cuidadora da mãe que a água na rua já estava na altura da cintura. Assim que recebeu o chamado, Rudinei Silva dos Santos, comandante dos bombeiros voluntários de Eldorado do Sul, apanhou uma lanterna, vestiu uma roupa de mergulho e partiu com um barco a remo com sua equipe para o resgate que durou cerca de duas horas.>
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Rudinei é considerado um herói pela população de Eldorado do Sul. Em toda a operação das enchentes, ele contabiliza ter resgatado pelo menos 250 pessoas das águas barrentas que alagam a cidade.>
O município foi proporcionalmente o mais afetado pelas inundações no Rio Grande do Sul. Segundo o governo, Eldorado do Sul chegou a ter 98% de sua área alagada durante as enchentes - apenas a rodovia não foi afetada.>
A área urbana ficou completamente debaixo d’água, inclusive a casa de Rudinei, que precisou dormir algumas noites no terceiro andar do prédio da prefeitura. A sede da administração municipal se tornou o quartel dos bombeiros, a sede da Defesa Civil e até dos bombeiros depois que o quartel também ficou debaixo d’água.>
O prédio abrigou até mesmo uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) após os hospitais e postos de saúde serem tomados pela água.>
Rudinei relatou à BBC News Brasil o que passou na tragédia das inundações. Confira a seguir:>
"Antes de tudo acontecer, tínhamos a previsão das autoridades de que iriam subir os níveis do Lago Guaíba e, consequentemente, haveria uma nova enchente aqui no nosso município. Então, dois dias antes de começar a inundar as primeiras ruas, nós já vimos emitidos alguns alertas e vídeos explicativos para que as pessoas não ficassem esperando.>
A enchente começou. No segundo dia de remoção das pessoas das áreas alagadas, havia muitos pedidos. A cada minuto, havia três pedidos ou mais.>
Às 18h30 chovia bastante e chegou um chamado via telefone. Nossa colega que fez o atendimento telefônico relatou que havia a necessidade de fazer um resgate de uma pessoa acamada, uma pessoa idosa que necessitava de atendimento especial porque ela não tinha nenhum tipo de movimento.>
Então isso nos fez pensar em como chegar até aquele local e como entrar. Quando a gente recebe um chamado, a gente já vai imaginando todas as situações que a gente pode se deparar, qual é o tipo de equipamento que a gente pode levar, quais as pessoas que a gente necessita. Quantos bombeiros a gente vai precisar no local, se a embarcação consegue chegar e se vamos precisar de uma viatura leve ou pesada.>
Depois dessa triagem via telefônica com a filha dessa pessoa, que estava em outra cidade. >
Ela não sabia exatamente como estava a situação, o que é mais uma questão que a gente tem que levar em consideração. Porque a informação que ela está nos passando por telefone não é de quem está no local, então isso pode ser uma coisa boa ou pode ser uma surpresa que talvez a gente perca um pouco de tempo, pois a gente não sabe exatamente qual a magnitude e grandeza desse atendimento.>
Mas como a pessoa nos relatou que a mãe dela, no caso, era uma pessoa de idade em estado terminal. Sem movimentos e dependente de uma cuidadora que também já tem certa idade, ela não conseguiria ir para um local mais seguro sozinha.>
Nessas condições, fomos até o local. Lá já estava sem energia elétrica e praticamente toda a cidade já estava às escuras, Chegamos com a nossa ambulância até próximo a esse local. Ali, colocamos nossa embarcação na água. Um barco sem motor. Fomos remando até a casa.>
Nos identificamos como bombeiros e entrei primeiro para verificar a situação. A gente faz uma análise de toda a cinemática e aí retornamos para a equipe. Como a gente verificou que seria possível passar o colchão pela porta onde ela estava, entramos e deixamos o barco ancorado próximo à entrada da casa.>
Quando chegamos ao local, a altura da água já estava encostando no colchão e ele já estava flutuando um pouco. A pessoa recebia oxigenoterapia e estava ligada a aparelhos para tomar medicamentos.>
A vítima era uma senhora, que tinha em torno de 70 anos, e se alimentava por sonda, além de não se movimentar. Pelo tempo acamada, ela tinha os membros muito enrijecidos, o que não facilitava a mobilidade. A gente teve que colocar um cobertor por baixo de, com muito cuidado, vários bombeiros que estavam submersos a suspenderam.>
Colocamos ela em cima do colchão novamente e fomos puxando o colchão sobre a água, cuidando para que ele não afundasse.>
O desafio seguinte foi passar pela porta porque ela era bem estreita. Então apertamos um pouco a lateral do colchão para que ele dobrasse levemente e pudesse passar.>
Com todo o cuidado, a gente fez esse movimento de lateralização sempre com cuidado com o tubo de oxigênio dela.>
Levá-la de barco até o hospital também foi um desafio, um desafio colocá-la em cima do barco. Sem dizer que esse não é o meio mais adequado para fazer o transporte de uma vítima com essa necessidade. Fizemos o caminho até a ambulância, que nos aguardava numa área seca, muito cuidado, pois estava completamente escuro e com as águas turbulentas.>
Levamos ela para o posto de saúde e a deixamos aos cuidados dos médicos. A maioria das pessoas que estavam nessas condições foram transferidas para Porto Alegre, via terrestre ou por aeronaves. Com certeza ela foi transferida para Porto Alegre porque o pronto atendimento estava recebendo muita demanda, então não poderia ficar com tantas pessoas nessas condições.>
Fizemos tudo isso tendo que proteger uma pessoa que não consegue responder o que está acontecendo com ela. Uma vítima que não pode te dizer onde está doendo. Tivemos apenas os relatos da cuidadora dessa idosa.>
Essa ocorrência nos causou um desgaste físico e emocional muito grande, por ser um trabalho noturno, sem praticamente nenhuma iluminação. Foi perigoso e bem complexo. Demandou bastante trabalho da equipe.>
Foram cinco bombeiros envolvidos, além da equipe da ambulância.>
É difícil quantificar quantos resgates eu fiz nessa operação das enchentes porque foram inúmeras viagens de barco, indo dos bairros e voltando até o local de desembarque. Mas nós temos uma estimativa de que toda a equipe dos Bombeiros Voluntários de Eldorado do Sul socorreram em torno de 4 mil pessoas.>
Como eu trabalho como comando na linha de frente, acredito que fiz em torno dos 250 atendimentos.>
Nós tivemos várias embarcações e motores que se danificaram devido ao grande fluxo de resgates e também por conta do grande número de obstáculos submersos. Havia veículos, madeira, galhos e todo o tipo de material debaixo d'água e isso acaba dificultando a navegação. Por muitas vezes, tínhamos que parar a operação, tirar o motor e limpar antes de continuar.>
Se ele se quebrasse, a gente tinha que parar e consertar. Sem dúvida, as enchentes foram a maior ocorrência aí que a gente já enfrentou. Porque quando tu vai num combate a incêndio, num acidente veicular é uma operação pontual que demanda pouco tempo.">
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