Publicado em 15 de novembro de 2025 às 12:03
A primeira coisa de que Lana Ponting se lembra sobre o Instituto Memorial Allan, um antigo hospital psiquiátrico em Montreal, Canadá, é o cheiro quase medicinal do local.>
"Não gostei da aparência do lugar. Não me pareceu um hospital", disse ela à BBC de sua casa em Manitoba.>
Aquele hospital — que no passado tinha sido a residência de um magnata escocês do setor naval — seria a sua casa durante um mês em abril de 1958, depois de um juiz ter ordenado que a então jovem de 16 anos se submetesse a tratamento por comportamento "desobediente".>
Foi lá que Ponting se tornou uma das milhares de pessoas submetidas a experimentos como parte da pesquisa ultrassecreta da CIA (a agência americana de inteligência) sobre controle da mente.>
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Agora, ela é uma das duas autoras de uma ação coletiva em nome das vítimas canadenses desses experimentos. Na quinta-feira (13/11), um juiz negou o recurso do Hospital Royal Victoria, abrindo caminho para que o processo prossiga.>
Segundo seus registros médicos, que ela obteve apenas recentemente, Ponting vinha fugindo de casa e saindo com amigos que seus pais desaprovavam, após uma mudança difícil com sua família de Ottawa para Montreal.>
"Eu era uma adolescente comum", ela lembra. Mas o juiz a mandou para o Allan.>
Uma vez lá, ela se tornou uma participante involuntária de experimentos secretos da CIA conhecidos como MK-Ultra. O projeto da Guerra Fria testou os efeitos de drogas psicodélicas como o LSD, tratamentos de eletrochoque e técnicas de lavagem cerebral em seres humanos sem o seu consentimento.>
Mais de 100 instituições — hospitais, prisões e escolas — nos EUA e no Canadá estiveram envolvidas.>
No Allan, Ewen Cameron, pesquisador da Universidade McGill, drogava pacientes e os fazia ouvir gravações, às vezes milhares de vezes, em um processo que ele chamava de "exploração".>
Cameron obrigava Ponting a ouvir a mesma gravação centenas de vezes.>
"A frase se repetia sem parar: 'Você é uma boa menina, você é uma menina má'", lembra Ponting.>
A técnica era uma forma de "direção psíquica", afirma a doutoranda Jordan Torbay, que pesquisou os experimentos e suas implicações éticas.>
"Essencialmente, as mentes dos pacientes eram manipuladas usando sinais verbais", diz ela, acrescentando que ele também analisou os efeitos de medicamentos para dormir, privação sensorial forçada e coma induzido.>
Os registros médicos mostram que Ponting recebeu LSD, bem como drogas como amital sódico (um barbitúrico), desoxina (um estimulante), além de gás nitroso (um sedativo conhecido como "gás hilariante").>
"Em 30 de abril, a paciente passou por exames... ela ficou bastante tensa e extremamente violenta ao receber o óxido nitroso, jogando-se para fora da cama e começando a gritar", escreveu Cameron em um de seus prontuários médicos, que Ponting obteve por meio de um pedido de acesso à informação.>
A dura verdade sobre os experimentos MK-Ultra veio à tona pela primeira vez na década de 1970. Desde então, várias vítimas tentaram processar os EUA e o Canadá.>
Os processos nos EUA foram, em sua maioria, mal-sucedidos, mas em 1988, um juiz canadense ordenou que o governo americano pagasse US$ 67 mil a nove vítimas. Em 1992, o governo canadense pagou 100 mil dólares canadenses (cerca de US$ 80 mil na época) a cada uma das 77 vítimas – mas não admitiu culpa.>
Ponting não estava entre eles, porque ainda não sabia que era uma vítima, diz ela.>
Durante décadas, Ponting disse que sentia que algo estava errado com ela, mas só recentemente tomou conhecimento dos detalhes de seu próprio envolvimento nos experimentos.>
Ela diz que tinha pouca lembrança do que aconteceu no Allan, ou nos anos que se seguiram.>
Ponting acabou se casando e se mudou para Manitoba, onde teve dois filhos com quem ainda mantém uma relação próxima. Agora, ela é avó de quatro netos. Mas afirma ter sofrido consequências para o resto da vida devido ao tempo que passou no Allan.>
"Senti isso a vida toda", disse ela.>
Ela diz que precisou tomar uma combinação de medicamentos a vida toda para lidar com problemas de saúde mental, que ela atribui ao tempo que passou no Allan, bem como a pesadelos recorrentes.>
"Às vezes acordo gritando no meio da noite por causa do que aconteceu", disse ela.>
O Hospital Royal Victoria e a Universidade McGill recusaram-se a comentar, pois o processo está correndo na Justiça. O governo fez referêncai à BBC ao acordo judicial anterior, de 1992, que, segundo afirmou, foi celebrado por razões "humanitárias" e não assumiu qualquer responsabilidade legal.>
Para Pointing, o processo judicial é uma oportunidade de finalmente obter algum tipo de encerramento.>
"Às vezes, sento na minha sala de estar e minha mente volta ao passado, e consigo pensar nas coisas que me aconteceram, sabe?", diz ela. "Toda vez que vejo uma foto do Dr. Cameron, fico com muita raiva.">
Embora o trabalho de Cameron tenha se tornado sinônimo dos experimentos MK-Ultra, Torbay afirma que sua pesquisa mostra que ele não sabia que estava sendo financiado pela CIA na época. Seu trabalho com a agência de inteligência americana terminou em 1964, e ele morreu pouco depois, de um ataque cardíaco, em 1967.>
Mas, independentemente de ele saber ou não a origem do dinheiro, Torbay afirma que ele deveria saber que os experimentos que estava realizando não eram éticos.>
Ela diz que espera que o processo judicial prossiga e que as vítimas obtenham algum tipo de justiça.>
"Não se trata exatamente de devolver aos pacientes o que eles perderam, porque isso não é possível, mas sim de garantir que o sofrimento deles não tenha sido em vão, que possamos aprender com isso", diz ela.>
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